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A mostrar mensagens de 2017

Zona raiana - Abril 2017

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photos by Joao Salvado

sexta-feira santa

Claro que é rebeldia esta forma como exacerbo alguns comportamentos. Puxo conversas sobre pitéus de cabidela ou costeletão de novilho, quando vou jantar a casa de amigos vegan; se educadamente me pedem que me abstenha de referir atrocidades animais, que razões ideológicas os impedem de falar sobre o assunto, eu disparo então sobre estudos científicos que provam o sofrimento do vegetal à beira da mastigação: a rúcula e o coentro que se apercebem da morte ao ver chover o tempero sobre a saladeira; a couve coração que perdeu a vida, inglória, no ritual de um festim sem glúten. Também por rebeldia, esta é a única sexta-feira em que não prescindo de me banquetear com enfartados rodízios de carne vermelha. Desnecessário, eu sei. Mas assim sou eu, Maria da Graça, portuguesa de 52 anos, moradora em Arroios - essa espécie de Tribeca lisboeta. Contraí o ateísmo em tenra idade. Valeu-me ter nascido filha de pais tolerantes, moldados pelos anos do amargo reviralho, que me aceitaram

Magnus Bergstrom e um pequeno rebate xenófilo

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Em boa verdade eu não sei quem foi Magnus Bergstrom (o nome leva um trema por cima do "o", que aqui declino porque não o encontro no teclado) mas assumo que tenha sido um linguista, um filólogo, um especialista em língua portuguesa; conhecido da maioria, talvez, sendo que apenas eu, que tenho andado a tratar da minha vida por outros lados, a mim me tenha escapado. Ou talvez tenha sido “apenas” um respeitável académico, um investigador fechado num gabinete ou numa sala de aulas. Ainda que desfazer essa dúvida possa estar à curta distância de um click de google, eu prefiro não o saber, prefiro quedar-me a imaginar que Magnus Bergstrom é o homem com quem simpatizo. Cheguei ao nome dele porque ressalta na capa do velhinho Prontuário Ortográfico que uso frequentemente como ferramenta indispensável para qualquer escrita - escrita é qualquer coisa que se ponha no papel, até um mail de resposta à companhia de seguros merece ser redigido em bom português - o recíproco, na troca

O transplante e o desplante

Faltam seis meses, pouco mais, para que uma pequena equipa médica, em representação desse enorme lastro parental a que chamamos “toda a Humanidade”, proceda ao primeiro transplante de cabeça... que, de facto, consiste exactamente no inverso: uma cabeça vai receber, por transplante, um corpo inteiro. Um russo, de apelido Spiridonov, que sofre de atrofia muscular espinhal que lhe torna o corpo inútil, irá receber, em Dezembro, o corpo inteirinho de um qualquer dador, alguém funcionalmente saudável mas em morte cerebral. O neurocirurgião italiano que anda há 30 anos a preparar a aventura, vai cortar a cabeça ao russo, arrefecê-la, colar cabeça boa ao corpo bom (vai demorar dia e meio e envolver 150 pessoas), deitar fora o outro par que não presta (cabeça e corpo estragados), e manter o novo indivíduo "recapitado" em coma induzido durante mais de um mês até a coisa estabilizar, para depois, se tudo correr bem, o senhor Spiridonov "ir" pela primeira vez à sua vid

A saudade

Tenho saudades da leitura de jornais em papel e daquele desconforto dos braços esticados, para os broadsheet, mas bem mais agradável nos tablóides - no conteúdo dos artigos era talvez o inverso. Saudades do barulho do súbito folhear das páginas e até do cheiro a tinta e da sujidade que ela deixava nos dedos. Tenho saudades de tocar nos botões de campainha, à porta - dois toques curtos, como quem anuncia “cheguei, fico aqui em baixo à tua espera”. Até tenho saudades de esperar na bicha da cabina telefónica. De fazer cá fora um olhar intimidante para pressionar o demorado utilizador “sê telegráfico na conversa. Isto não é para vir para aqui namorar, há mais gente à espera!” e receber em troca, pelos quadradinhos envidraçados, um ambivalente sorriso amarelo que queria dizer simpatia para o interlocutor em linha mas desdém para quem ameaça de fora do abrigo. Mas do que tenho mesmo muitas saudades é daquele embaraço ao balcão da capelista, quando ia levantar os rolos de fotografi

Me and my selfie

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A pretexto de experimentar uma nova objectiva saí para a rua, para fazer umas fotografias. Escolhi um motivo. Era verão, a cidade estava cheia de turistas, decidi fazer selfies - aliás, pessoas que se fotografam em selfies . Em dois ou três dias fiz milhares de fotos das quais uma centena, nem isso, podem ser consideradas interessantes. A seguir resolvi inventar pequenas histórias à volta das fotos mais expressivas. São narrativas imaginadas sobre pessoas que não conheço e com quem me cruzei, e uni, nessa cumplicidade do instante fotográfico. Aqui ficam três ou quatro exemplos.

Mulheres do Século XX

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20th Century Women, “Mulheres do Século XX” é (para mim) a melhor surpresa das nomeações para os Oscars 2017. É uma incursão do cinema mumblecore - a mais interessante corrente de cinema independente da última década - às portas de Hollywood. Um cinema que privilegia a estética ao espectáculo, a narrativa mental à acção, a extensão narrativa ao orçamento de produção. E que talvez por isso tenho criado anticorpos em Hollywood. A carimbar a linhagem “mumblecore” está a actriz Greta Gerwig que assina com Annette Bening duas talentosas interpretações, em que Hollywood entendeu agora não reparar. Um filme que nos fala da forma como “vivemos” - tirando eu aqui partido, no nosso português, da homografia dos diferentes tempos verbais, o presente e o pretérito. O filme acomoda-se a uma única nomeação para os Oscars - a de candidato a melhor argumento original. Faltam-lhe certamente as nomeações para um ou dois papéis de interpretação, talvez para Melhor Realização ou para Melhor Fi
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Praça do Comércio/Cais das colunas #1 - Lisboa © photo by João Salvado August 2013 Praça do Comércio/Cais das colunas #2 - Lisboa © photo by João Salvado August 2013

A Caixa de Fósforos

Aquilo que mais me encantou na “Caixa de Fósforos”, o livro de Nicholson Baker, quando o li há uns anos, foi a capacidade do escritor de nos impor a obrigatoriedade de pairar demoradamente sobre o tempo parado da narrativa. O romance conta a história de um homem que todas as manhãs, muito cedo, acende a lareira e prepara a casa para acolher o frio dos dias, sempre envolvido em pequenas tarefas que lhe afogueiam longos pensamentos, que vai narrando. O gesto de riscar um fósforo para a lareira pode ser uma tarefa que, na minúcia do escritor, rende um capítulo inteiro de literatura. A escrita infiltra-se nas frestas de um tempo que não existe, como num efeito cinematográfico de “time freeze” onde a acção parou, os intervenientes paralisaram, mas nós continuamos a andar por lá, alongando-nos na observação do momento. O que requer uma escrita de fragmentação, tão oposta aquela outra que impõe velocidade à narrativa com o objectivo de chegar rápido ao sumo do enredo, da trama, ao dese

Moonlight

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Do que é que eu não gostei no (filme) Moonlight? Houve apenas uma coisa que me incomodou. E incomodou bastante. Não, não foi o tema da homossexualidade, que isso é assunto mais que acomodado nos tempos que correm - talvez ainda não acomodado por toda a gente, mas para gente como nós, que ainda tem 7 euros para pagar por uma cadeira de cinema, os desígnios da sexualidade, nas diversas variações de género, representam apenas factores de coloração da entrega dos afectos. Não, também não foi o black trash suburbano de Miami, os ghetto dwellers, os crack head neighbors dos arredores, a desestruturação familiar, a toxicodependência parental, que para ver isso não é preciso ir aos slums da América, temos por cá equivalente. Também não foi o cerco da realização cinematográfica (ou da “cinematografia”, se quisermos), angustiante, quase claustrofóbica, de curta distância focal, de fundos desfocados, da câmara handheld que olha a acção e se mexe misturada com os

Quando são as memórias a lembrar-se de nós...

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Saíamos do cinema às três da manhã e ainda íamos à Alga comer um bife. O Quarteto tinha sessões da meia noite, dois filmes de culto que só cabeças refrescadas como a do Pedro Bandeira Freire conseguiam aguentar - um Agnès Varda e logo a seguir um Visconti, por exemplo. A Alga era pouco mais que um balcão corrido. O Loja Neves anotava tudo num caderninho de goodies que, se ainda o tiver, valerá milhões. O Loja fumava demais. Cigarros sem filtro. Português suave, acho. Já não me lembro como é que o Zé Velho ia para casa nas sextas à noite. Morava em Odivelas. Nos outros dias saía do cineclube e apanhava o último metro na Avenida, ao fundo a rua do Salitre. Andava de cabeça perdida com a história da fauna social que povoava o último comboio para Entrecampos - seguranças, operários da noite, prostitutas, intelectuais, boémios, empregadas da limpeza, etc. Já toda gente se conhecia. Entre a Rotunda e o terminal de Entrecampos eram uma família. Queria reduzi-los a um guião. E nós já lhe