Lisboa adúltera


Bastaram-me trezentos metros a descer a rua do Alecrim e assomar cá ao fundo na rua de S. Paulo para perceber o que se está a passar na cidade. Qual gentrificação?! O que se passa é bem mais elaborado e modernista. Não é a cidade, é o mundo inteiro a transformar-se, a caminhar para um futuro que ainda não conhecemos. Por isso viajamos tanto. Somos formigas ansiosas em carreiros low cost. Anda toda a gente a viajar para qualquer destino enquanto pode, enquanto souber viajar.
Eu levava a cadela pela trela porque íamos ao veterinário ali em São Paulo. O passeio é estreito e os eléctricos passam rente, não se desviam - os eléctricos nunca se desviam - numa tira acanhada de calçada estragada, romântico decay como o turista gosta, pouco funcional e ao longo do novo pulsar do negócio urbano: tascas transformadas em lounge bar, outras em snack baguette, retrosarias que passaram a cash converters e paredes agora ATM onde antes havia multibanco. A cadela confinada a meio metro de trela, entre a parede com cheiro a cerveja mal mijada e o carril do eléctrico. Tudo está diferente.
Estranho. Turista na minha cidade, eu era agora o alvo de outros olhares, porque era diferente, “olha um autóctone com uma cadela pela trela e o dossier das vacinas debaixo do braço, so cute!” Nunca uma ida ao veterinário tinha derivado tão instagramável. Há gente com trolleys de cabine pela trela, a arrastar o rodado na calçada alfacinha, mas um gajo com uma cadela “gotta be a local”, porque ninguém faz airbnb com uma cadela, a menos que seja em sentido figurado.
Chegam todos os dias aos milhares, enchem as ruas de Lisboa para virem fazer aqui o mesmo que fazem na terra deles. As mesmas video-chamadas de whatsapp, os mesmos tanqueray e cappuccinos em mesas de terrace onde se fumam cigarros electrónicos, com a mesma música lounge. E eu, na ânsia de me mostrar hospitaleiro, didático, “no, we‘re not used to drink cappuccino, we usually drink bica, you know, tipical Portuguese coffee, yeah, bee-ka. There’s also garoto and italiana, that means kid and italian female...” Como é que se explica a uma finlandesa o que são os Santos Populares?, “now we have the popular saints, you know, parties all over and marchas... it means marches.”
Useless.
Há quem venha de Tankavaara na Lapónia, visitar Lisboa, o que se compreende porque têm nove semanas de noite e no outro solstício outro tanto de lusco-fusco a que chamam dia. Mas há também quem venha de Velika Gorika que fica a setenta cêntimos de autocarro do aeroporto de Zagreb, porque compensa. Há quem venha de Catânia, na Sicília, e insista em registar-se no hostel como romano do sul, para evitar o preconceito. Há quem venha de Nizhni Novgorod converter em super bock os rublos extra que a fábrica lhe concedeu por ter aceitado renunciar a direitos laborais, e há até quem venha de Valea Dragului na Roménia para realizar uns trocos e umas carteiras no eléctrico 28.
Tomemos o exemplo de Tankavaara onde nunca fui, mas de onde vem a Bengta (acho que é assim que se escreve, retive apenas a fonética do nome, já estávamos um pouco toldados pelo ensolarado que batia nos copos de gin), “what a wonderful city you have, João, you gotta be so proud” - uma ideia para que nunca fui preparado, o orgulho municipal. Dito assim, soou-me a antítese daquele outro sentimento que se me apodera quando chega o IMI para pagar.
Pensei que poderia retribuir referindo qualquer coisa de elegante sobre a Finlândia: nokia, vodka, suomi... não, tudo muito fraco, nada de consistente me ocorreu. Optei por um “que experiência, goddamnit!, deve ser remarkable ter vivido paredes-meias com a velha Rússia bolchevique, São Petersburgo/Leningrado aí ao lado!”, mas traduzi paredes-meias por “so close to” - mau resultado, enfraqueceu a semântica. Pouco sei sobre a Finlândia e o que eu queria mesmo era conduzir a conversa para S. Petersburgo, depois para o Hermitage, a seguir para o Sokurov e o Arca Russa, aí estaria à vontade para falar seguramente mais meia hora - tenho territórios também - até que a lascividade do álcool viesse enfadar as palavras e do silêncio crescessem olhares e carícias, e antes que a Bengta pudesse disparar um mortal “gotta go!”, o que veio a acontecer. Mortal para mim, providencial para a cadela, farta do deck do lounge e talvez enjoada pelo efeito da antirrábica.
O mundo está a mudar.
Talvez não muito mais que nas outras vezes em que também mudou. Mas agora estamos a vê-lo mudar, passa-se tudo aqui ao fundo da rua.
As cidades, a minha cidade está a transfigurar-se. Mas para que servem as cidades senão para se submeterem à transformação. Eu gosto da Lisboa insurgente e acidentada, avessa a tipificações. Sempre a senti assim, calçada debaixo dos meus pés. Lisboa adúltera, empresto-a por uns tempos, não me importo, a quem vier fruí-la. Depois, madura, experiente e cansada, voltará a ser nossa. Só nós sabemos cuidar dela... “we are alfacinhas, you know, just like little lettuces, all words starting with al- have Arabic origin, you understand?”

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