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Incipit

 Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas - é assim que começa L'Étranger, O Estrangeiro, de Camus. Por qualquer razão insondável a frase de arranque ficou-me colada na memória, tanto quanto a obra. É mais que um incipit. Não é apenas uma frase de início, é um arrastão que leva consigo a energia, a entropia que o romance irá desenvolver. “Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas”, habitando silenciosa na minha memória, baixei-a para a escrita duas vezes. Há sete anos, no dia em que a frase literalmente fez sentido, e uns anos depois, quando faleceu o meu pai - pese embora a discordância de género a dor da perda paterna é-lhe equivalente. Conheci, aquando da universidade de Aveiro, no Toc'Aqui jazz bar da Praça do Peixe, estabelecimento que acolhia os serões vazios de tantos docentes e quadros deslocados na cidade, uma professora do departamento de Línguas que gostava de falar de cultura e literatura, sobretudo da francesa. Um dia fa
Por onde passa este ano a Volta, não sei. No meu tempo a Volta passava por Quintela de Lampaças, Jorjais de Perafita, Busteliberne e outros locais de grandeza mágica. Guardo de todos uma doce memória e uma fotografia de repérage. Em Quintela de Lampaças, a aldeia que enfeita a velha estrada entre Macedo de Cavaleiros e Bragança, encontrei a mulher mais bonita que o meu olhar terá porventura enxergado. Uma jovem de cabelos descuidados de um raro aloirado transmontano queimado pelo sol, pele de pêssego esmeralda - seria esse o seu nome? - sensualmente vestida de camponesa pobre, lenço e rodilha na cabeça, chinelos desajeitados; nada poderia ter sido mais cuidado numa eventual produção fotográfica para uma qualquer revista vanity a folhear nos lofts de Park Avenue, aí onde os ricos se torcem de inveja da felicidade desadornada dos pobres. Acompanhei-a com um varrimento de olhar durante uns dez metros. Segurava à corda uma vaca turina que levava a beber água no tanque do chafariz público.

O husky siberiano

Tu passas a tarde toda em casa, fechado, condicionado ao ar respirável, que lá fora está um braseiro que não digo nada - este “tu passas” é reflexivo, agora usa-se; diz que nasceu do futebolês mas já anda cá fora na fornalha da língua - passas a tarde inteira a ouvir Pearl Jam, mais por dever que por prazer, e a única coisa que se safa é a faixa 13, “last kiss” - “we were out on a date in my daddy's car, we hadn't driven very far. There in the road, straight ahead, a car was stalled, the engine was dead.” Lá fora um vizinho em calções e tronco nu, a passear um husky siberiano. Um husky à trela com a canícula a bater nos 40 graus. Há gente que não tem noção. Gente que agora se quer livrar de um husky por causa do Putin. Ainda pensei abrir a janela, entrava-me um bafo de calor mas soprava-lhe um comentário gélido, de circunstância. Mas o que é que se pode dizer a um vizinho de calções e tronco nu?, “então vizinho, a passear o cãozito, não é verdade?" Ele devolvia-me uma resp