Por onde passa este ano a Volta, não sei.
No meu tempo a Volta passava por Quintela de Lampaças, Jorjais de Perafita, Busteliberne e outros locais de grandeza mágica. Guardo de todos uma doce memória e uma fotografia de repérage.
Em Quintela de Lampaças, a aldeia que enfeita a velha estrada entre Macedo de Cavaleiros e Bragança, encontrei a mulher mais bonita que o meu olhar terá porventura enxergado. Uma jovem de cabelos descuidados de um raro aloirado transmontano queimado pelo sol, pele de pêssego esmeralda - seria esse o seu nome? - sensualmente vestida de camponesa pobre, lenço e rodilha na cabeça, chinelos desajeitados; nada poderia ter sido mais cuidado numa eventual produção fotográfica para uma qualquer revista vanity a folhear nos lofts de Park Avenue, aí onde os ricos se torcem de inveja da felicidade desadornada dos pobres. Acompanhei-a com um varrimento de olhar durante uns dez metros. Segurava à corda uma vaca turina que levava a beber água no tanque do chafariz público. Os nossos olhares não se cruzaram. Não chegou a ver-me, acho. Não há nada para reparar num urbano encostado a um carro. Eu, sensível às belezas da vida e ela sem vida para sensibilidade ou belezas. O mundo está cheio destas harmonias improváveis. Não voltei a vê-la, claro, mas não me esqueço do encandeamento daquela tarde.
Jorjais de Perafita não seria nada não fora o assombro do nome e o facto da aldeia se exibir ao lado da estrada sem nunca a tocar. Vindo de Murça para Vila Real pouco há para ver além da paisagem agrícola e o enfadonho galvanizado de um rail de protecção que, imutável, sempre nos acompanha. À distância, espraia-se a aldeia paisagem que teima em acabar num cemitério. Jorjais sempre me pareceu uma aldeia-instalação, uma narrativa ali intencionalmente edificada, um território que anuncia ao viajante que tudo acaba sempre no seu fim.
Já em Busteliberne, uma aldeia entre Cabeceiras de Basto e Vieira do Minho - se é que se pode chamar aldeia ao casario abandonado que orna duas curvas da estrada - eu jurei que havia de comprar ali uma casa. “Para que queres tu uma casa em Busteliberne, nos confins do mundo?”, “eu quero que cheguem as tardes de sexta-feira para vos anunciar, aqui no ar condicionado do estúdio, que, xau até segunda, vou passar o fim de semana a Busteliberne!, e deixar-vos, todos, invejosos a murmurar e a perguntar porque é que este gajo vai passar todos os fins de semana à Suíça?"
Lembro-me de uma outra vila a sul do Douro, de cujo nome já não estou seguro, talvez seja Tabuaço; o Pedro Luís e o Brites a marcar posições de praticável, paus de bandeira e passa-cabos e eu a alimentar conversa de circunstância com o autarca que nos acompanhava. A vila desenvolve-se ao longo de uma recta atravessada por pequenas perpendiculares. A recta era pista de aceleração para motorizadas, aquelas motorizadas proletárias de pequena cilindrada, famel e zundapps de zunido aflitivo, sempre no limite máximo da aceleração, a lampejar vertigem nos olhos e nos ouvidos de meia dúzia de jovens locais. “Estes tipos, a acelerar desta maneira e sem atenção aos cruzamentos, não se matam?”, perguntei. “Matam!” respondeu, “mas quando estes morrerem logo aparecem outros.” Assim, com a clareza e a desobrigação que se exige a um servidor público. Que lição, vinda de um autarca com o pelouro do “desporto, ajardinados e festividades”. Tanto ensinamento numa simples frase. Afinal a vida é um rodízio e nós andamos apenas a cumprir etapas.
Lembrei-me disto.
Mas para quê tantas palavras, tantas memórias à volta da Volta quando ficou tudo dito, e bem explicado, no cantar do Sérgio Godinho: “a descer a Boavista surgiram três atletas, um piloto, outro ciclista e o outro pintava as metas”.
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