Incipit
Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas - é assim que começa L'Étranger, O Estrangeiro, de Camus.
Por qualquer razão insondável a frase de arranque ficou-me colada na memória, tanto quanto a obra.
É mais que um incipit. Não é apenas uma frase de início, é um arrastão que leva consigo a energia, a entropia que o romance irá desenvolver.
“Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas”, habitando silenciosa na minha memória, baixei-a para a escrita duas vezes. Há sete anos, no dia em que a frase literalmente fez sentido, e uns anos depois, quando faleceu o meu pai - pese embora a discordância de género a dor da perda paterna é-lhe equivalente.
Conheci, aquando da universidade de Aveiro, no Toc'Aqui jazz bar da Praça do Peixe, estabelecimento que acolhia os serões vazios de tantos docentes e quadros deslocados na cidade, uma professora do departamento de Línguas que gostava de falar de cultura e literatura, sobretudo da francesa. Um dia falámos de Camus e ela soltou um entusiástico e repentino "aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas!” Fiquei fascinado, pensei ter encontrado ali, mais que uma cumplicidade cultural, um incipit de qualquer coisa. Mas não. Numa das minhas primeiras vindas a casa, a Lisboa, levei-lhe uma colectânia de CDs do Léo Ferré, coisa que eu muito estimava e com que ela desapareceu sem nunca devolver. Porquê? Je ne sais pas!.. Teria sido por causa daqueles versos do Ferré “...petite, tu as des yeux d'enfant malade et moi j'ai des yeux de marlou”? Não voltei a encontrá-la nos serões do Toc’Aqui. O desrespeito pelo compromisso de devolução de livros e discos emprestados é coisa que verdadeiramente me incomoda e que compromete qualquer amizade.
Tal como me incomoda um escritor que anda por aí. A antipatia - pessoal, mais que literária - que por ele alimento levou-me, há uns tempos numa livraria, a folhear uma obra sua acabada de editar, para lhe ler o arranque, na expectativa de que o incipit fosse fraco e eu pudesse confortar o meu legítimo fastio, a minha pequena repulsa de estimação.
O livro começava mais ou menos assim, cito de memória: “Abriu o livro e procurou a primeira frase. Sempre ouviu dizer que o arranque de um livro é muito importante porque se percebe logo o que podemos esperar. Ficou surpreendido quando viu que a primeira frase dizia, abriu o livro e procurou a primeira frase. Perto dele, com o mesmo livro na mão, outro leitor espreitava também, e os seus olhares encontraram-se. Abriram ambos um livro e, julgando lê-lo, estavam a ser lidos. Voltou ao livro onde a história parece começar por…” E é aqui, finalmente, depois desta escusada construção em nariz-de-cera, deste salão de espelhos pretensiosamente literários em vácuo narrativo, é aqui que o livro arranca, sobre nada que tenha a ver com o que ficou dito, para definitivamente nos enfadar com uma história de pianistas.
Eu, sem mais literaturas, devolvi o livro ao escaparate mas tive o cuidado de fazer aquele pequeno gesto de traquinice excitativa que faço habitualmente com os livros do Chagas Freitas ou do Paulo Coelho, que consiste em deixar o exemplar de costas, a contracapa virada para cima, o que sempre confere à obra menor visibilidade. Porque assiste ao leitor humilhado pelo escritor um direito de indignação, o incipit de não permitir estar simultaneamente dentro e fora de um livro que não quer ler.
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