O husky siberiano

Tu passas a tarde toda em casa, fechado, condicionado ao ar respirável, que lá fora está um braseiro que não digo nada - este “tu passas” é reflexivo, agora usa-se; diz que nasceu do futebolês mas já anda cá fora na fornalha da língua - passas a tarde inteira a ouvir Pearl Jam, mais por dever que por prazer, e a única coisa que se safa é a faixa 13, “last kiss” - “we were out on a date in my daddy's car, we hadn't driven very far. There in the road, straight ahead, a car was stalled, the engine was dead.”
Lá fora um vizinho em calções e tronco nu, a passear um husky siberiano. Um husky à trela com a canícula a bater nos 40 graus. Há gente que não tem noção. Gente que agora se quer livrar de um husky por causa do Putin. Ainda pensei abrir a janela, entrava-me um bafo de calor mas soprava-lhe um comentário gélido, de circunstância. Mas o que é que se pode dizer a um vizinho de calções e tronco nu?, “então vizinho, a passear o cãozito, não é verdade?" Ele devolvia-me uma resposta álgida de certeza, “...e você, a ouvir Pearl Jam?”
“Snappy answers to stupid questions” é um livro interessante que em tempos me passou pelas mãos. Tem entradas como esta: tu estás em casa, no sofá, alguém chega e pergunta “então, já estás em casa?”, ao que te apetece responder com frieza e impertinência “não, isto não sou eu, isto é um holograma, o verdadeiro Eu está ali fora na marquise a aliviar a flatulência derivada ao dilatar dos corpos”. Ou estás no café a beber uma jola fresca e a ler jornal, chega um amigo e pergunta-te “então, estás a ler o jornal?”
O CD dos Pearl Jam é duplo. São dois discos numa capa fininha de cartão prensado, que lhe dá um look ameno, pré-tipográfico. Foi gravado ao vivo, há uns anos, no estádio do Restelo e o público no final de cada música exulta, salta, bate calorosamente palmas e grita ao rubro e em uníssono “Portugal, Portugal, Portugal”. Acontece tanta coisa bizarra quando se casa rock com multidão, que eu mal entendo.
Não fosse este calor de corpos suados e pestilentos e ainda ia ouvir um bocadinho de Fausto para desenjoar dos grungy alt-rockers da tarde: “abraça-me bem e cobre o meu corpo enfim nesse agasalho. São os teus braços sim, cuida de mim, basta-me um gesto, porém, abraça-me bem!", mas está muito calor.

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