Leave Her to Heaven
O que é o preço
da fama?
Será uma
apresentadora de televisão fugir do estúdio enroscada no porta-bagagens do meu
carro, para evitar o psicopata que a espreita no estacionamento e todos os dias
lhe entrega cartas de amor?
Será o pivô do
jornal que recebe diariamente uma gravata de seda, vinda de admiradora anónima,
com indicações precisas do pandã para camisas e casacos?
Já tenho visto
celebridades no check out do hotel, ser-lhes
recusado o pagamento da despesa porque “o
privilégio da sua estadia foi inteiramente nosso!” – isso não é também um
preço para a fama?
Já vi aldeias paradas
a aplaudir um carro que passa porque traz o emblema da SIC ou da TVI. Vi policias
desculparem-se por ter mandado parar famosos da televisão, que iam apenas bem
bebidos e em excesso de velocidade, “siga
lá, e já agora um autografozinho para a minha filha, pode ser?”
Vi um matulão
fazer uma espera ao apresentador, porque não gostou da forma derretida como a
esposa, que segurava debaixo do braço, olhava para o entertainer durante o
espectáculo.
Há paparazzi a incomodar gente famosa, e há
gente famosa a telefonar ao paparazzo para
lhe dizer onde irá estar a certa hora.
“O preço da
fama” não passa de um jargãozito, valorizado para lá ou para cá, consoante a
conveniência e as circunstâncias.
Por cá, o mundo
dos famosos é um agregado pouco numeroso.
Tudo o que se
passa é mundano e o nosso “preço da fama”, seja para pagar seja para receber, nunca
ultrapassa uma mão cheia de moedas.
Assistimos, por
vezes, a um ou outro episódio despoético, mas nada que perturbe a a nossa
capacidade de acomodação da realidade.
Fazemos as
coisas assim, pequenas, talvez felizmente.
Mas sobre “o
preço da fama” há uma história que sempre me impressionou.
Vem da terra
onde se fabricam sonhos e se constrói a ficção, mas é dolorosa, por ser sórdida
e verdadeira.
Lembrei-a este
fim de semana ao revisitar uns clássicos do cinema: “Heaven Can Wait”, de Ernst
Lubitsch; “Leave her to Heaven” (Amar foi a minha perdição), de John Stahl; e “Laura”,
de Otto Preminger.
As três obras são
atravessadas pela presença da actriz Gene Tierney.
E é no filme da
sua vida privada, não na tela, que esta história acontece.
Gene era dotada
de uma beleza deslumbrante. Diz-se que o seu primeiro desempenho teatral
consistiu, tão só, em atravessar o palco com um balde de água na mão. Poderia ter
envelhecido condenada a papéis de figuração, mas não. Logo nesse dia um crítico
perspicaz se apressou a escrever na resenha: “é a mais bela carregadora de baldes que alguma vez vi na vida!”
Daí até a Twentieth Century-Fox se aperceber do potencial daquela
figura, da sua força expressiva e dramática, foi um passo. Acresce que o verde
luminoso dos olhos de Gene assentava que nem uma luva nas novas nuances tonais
que a anunciada paleta “technicolor” permitia explorar.
Trabalhada por mãos profissionais como Lubitsch e Preminger – e antes
disso, pelos braços não menos profissionais de John F. Kennedy – Gene Tierney
arrematou tudo: beleza natural, expessão dramática, glamour, trabalho,
influência social e talento – a star was born!
A parte menos original é que, a par da fama e do sucesso, corria um
lado privado turbulento e pouco feliz na vida da actriz. Instabilidade
emocional, azar aos amores... e outras coisas que ainda estavam para vir.
Em 1943, já assoberbada de problemas, Gene cumpriu uma incontornável obrigação
social, visitou a Hollywood Canteen.
A Hollywood Canteen, era um armazém transformado em salão de
espectáculos, de dança e restaurante.
Funcionava como instituição de motivação e honra para os heróis militares
destacados para a guerra. Uma iniciativa patriótica impulsionada por Bette
Davis.
Na Hollywood Canteen, entrava-se, comia-se, bebia-se, dançava-se, socializava-se...
tudo sem pagar – a farda era o único bilhete de entrada.
Homens e mulheres ligados às forças armadas ou à máquina do Estado que
a alimentava, tinham divertimento garantido.
Para tornar a ideia ainda mais brilhante, a Hollywood Canteen
funcionava com empregados muito especiais. A gente famosa de Hollywood garantia
todos os serviços, em voluntariado.
Actores, actizes, músicos, cantores, bailarinas, produtores,
realizadores, técnicos, criativos, enfim, artistas e famosos... todos por lá
passavam para homenagear os que serviam a Pátria. Famosos aos magotes serviam à
mesa, lavavam a loiça, cozinhavam e limpavam as casas de banho (ou fingiam),
cantavam, dançavam, improvisavam espectáculos e galvanizavam a soldadesca em
torno do ideal patriótico – um lugar de epifania para quem daí a dias embarcava
para a guerra do Pacífico
Era uma espécie de botequim em porto de abalada, mas com fins nobres,
respeitáveis e patrióticos. Um soldado motivado é meia guerra vencida.
Em menos de um ano um milhão de soldados, tinham passado pela
“cantina”, convencidos que não se morre nas ilhas Marianas nem nas Salomão carregando
na mochila um beijo e um autógrafo de Lucille Ball ou de Mary Pickford.
Mas não eram só essas que serviam à mesa. Também lá iam Abbott &
Costello, Fred Astair, Louis Armstrong, Cecil B DeMille, Lauren Bacall, Frank
Sinatra, Count Basie, Shirley Temple, Robert Mitchum, Marlene Dietrich, Cole
Porter, Ava Gardner, Ginger Rogers, e tantos, tantos outros... Aliás, sabe-se,
iam lá todos.
Todos passaram pela Hollywood Canteen, selando a obrigação patriótica
e, já agora, colhendo o reconhecimento público por o terem feito.
Foi num cenário difícil, deprimida pelo insucesso no amor, exausta
pela rodagem de “O Céu Pode Esperar”, e já numa gravidez muito avançada, que
Gene Tierney cumpriu a obrigação solidária de passar, também ela, por Hollywood
Canteen.
Em finais de 1943, a “cantina” recebeu a visita da “mulher mais bonita da história do cinema”
como lhe chamava Darryl Zanuck, fundador da Twentieth Century-Fox.
Uma visita fugaz, apenas uma, porque Gene não estava em condições de
festança.
Mas mesmo assim tudo havia ainda de piorar.
Após a visita, Gene adoeceu com rubéola. E em consequência da doença,
a bebé Daria, a sua primeira filha, nasceu cega, surda e deficiente profunda.
Por razões que
não colhem nesta narrativa, a Hollywood Canteen fechou as portas uns anos mais
tarde. Já tinha feito felizes por uma noite, 3 milhões de soldados aliados.
Os problemas da
filha, o desgosto de uma vida carregada de dor e insucesso afectivo,
contrastando com a imagem pública que alimentava, devastavam Gene Tierney.
Mas a amargura de
Gene dilacerou, quando anos mais tarde uma fã confessa se aproximou e lhe
contou uma história: admirava-a de tal forma, que naquela noite, na Hollywood
Canteen, não pode deixar de a ir ver. Toda a gente dizia que Gene era ainda mais
bonita ao vivo que na tela. A vontade de a ver era tão forte que decidiu
desrespeitar as indicações de isolamento e quarenta a que estava clinicamente
obrigada, por ter rubéola, para a poder ver e beijar em carne osso.
Gene, recebeu a
informação mortificada. E num doloroso silêncio, afastou-se.
Nunca haveria de comentar
este episódio, em público, mas deixou uma referência no seu livro de memórias:
“A
partir dessa data tornei-me totalmente insensível a qualquer comentário
elogioso!”
Daria Cassini,
assim se chamava a filha deficiente de Gene, sobreviveu à mãe. Viveu até aos 66
anos. Muito provavelmente graças à assistência e aos cuidados médicos
generosamente garantidos em testamento, por Howard Hughes, amigo solidário de
Gene.
Daria faleceu,
faz agora dois anos, simbolicamente a 11 de Setembro de 2010.
Leave her to
Heaven.
Lisboa, 10 Setembro 2012
JS
Comentários
O Ceu pode Esperar ressoa. Muito. Fica o eco.