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Consulta Externa

  O cenário é o consultório médico de um hospital público, teatralmente reproduzido. Em jeito de didascália, adianto que nada me move contra o serviço público de saúde; pelo contrário, admiro-o e gabo-lhe a temeridade de ir conseguindo resistir às adversidades. Regressando ao espaço cénico da minha consulta externa. Depois de substancial tempo de espera - faz parte! - sou chamado ao gabinete. Entro, “bom dia, dá-me licença?”, “faça favor de se sentar!” e aponta com a esferográfica para a cadeira em frente, levantando o olhar pouco acima dos meus joelhos. Sento-me. Acomodo-me, sabendo que vou ser recebido mais como um vulto que traz um episódio clínico, que uma criatura que merece simpatia e atenção. Conheço bem o burlesco dos minutos que se seguem. Olho demoradamente a médica à minha frente, sei que tenho tempo para me divertir, para confabular pormenores, antes que ela me dirija um primeiro olhar e atenção humanizada. Parece-me uma mulher sombria e velha. Veste-se como uma velha, um

Transfake

O que se passou, o que esteve à volta da interrupção da peça do São Luiz na passada quinta-feira, pode ter sido uma questão bem mais complicada, ou talvez bem mais simples. A acção da atriz-prostituta-transexual (assim se definiu) keyla Brasil, não foi um acto isolado, teve participação e conivência de uma boa parte da plateia, que estava lá para isso. No vídeo que tem circulado nas redes sociais pode ver-se: a filmagem começa no momento em que Keyla, semi-nua, se levanta da cadeira. Uma câmara (telemóvel) de alguém sentado numa das filas dianteiras da plateia, aponta para trás, para captar o arranque, a descida da mulher ao longo da coxia central, gritando para o actor em cena "Transfake! Desça do palco, tenha respeito!” O vídeo, na versão editada, é composto por 3 câmaras, três ângulos de enquadramento apontados à interveniente: a partir da plateia, lado esquerdo; da plateia, lado direito; e do balcão central. Num registo amador e informal, a “cobertura” do acontecimento denota

Incipit

 Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas - é assim que começa L'Étranger, O Estrangeiro, de Camus. Por qualquer razão insondável a frase de arranque ficou-me colada na memória, tanto quanto a obra. É mais que um incipit. Não é apenas uma frase de início, é um arrastão que leva consigo a energia, a entropia que o romance irá desenvolver. “Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas”, habitando silenciosa na minha memória, baixei-a para a escrita duas vezes. Há sete anos, no dia em que a frase literalmente fez sentido, e uns anos depois, quando faleceu o meu pai - pese embora a discordância de género a dor da perda paterna é-lhe equivalente. Conheci, aquando da universidade de Aveiro, no Toc'Aqui jazz bar da Praça do Peixe, estabelecimento que acolhia os serões vazios de tantos docentes e quadros deslocados na cidade, uma professora do departamento de Línguas que gostava de falar de cultura e literatura, sobretudo da francesa. Um dia fa
Por onde passa este ano a Volta, não sei. No meu tempo a Volta passava por Quintela de Lampaças, Jorjais de Perafita, Busteliberne e outros locais de grandeza mágica. Guardo de todos uma doce memória e uma fotografia de repérage. Em Quintela de Lampaças, a aldeia que enfeita a velha estrada entre Macedo de Cavaleiros e Bragança, encontrei a mulher mais bonita que o meu olhar terá porventura enxergado. Uma jovem de cabelos descuidados de um raro aloirado transmontano queimado pelo sol, pele de pêssego esmeralda - seria esse o seu nome? - sensualmente vestida de camponesa pobre, lenço e rodilha na cabeça, chinelos desajeitados; nada poderia ter sido mais cuidado numa eventual produção fotográfica para uma qualquer revista vanity a folhear nos lofts de Park Avenue, aí onde os ricos se torcem de inveja da felicidade desadornada dos pobres. Acompanhei-a com um varrimento de olhar durante uns dez metros. Segurava à corda uma vaca turina que levava a beber água no tanque do chafariz público.

O husky siberiano

Tu passas a tarde toda em casa, fechado, condicionado ao ar respirável, que lá fora está um braseiro que não digo nada - este “tu passas” é reflexivo, agora usa-se; diz que nasceu do futebolês mas já anda cá fora na fornalha da língua - passas a tarde inteira a ouvir Pearl Jam, mais por dever que por prazer, e a única coisa que se safa é a faixa 13, “last kiss” - “we were out on a date in my daddy's car, we hadn't driven very far. There in the road, straight ahead, a car was stalled, the engine was dead.” Lá fora um vizinho em calções e tronco nu, a passear um husky siberiano. Um husky à trela com a canícula a bater nos 40 graus. Há gente que não tem noção. Gente que agora se quer livrar de um husky por causa do Putin. Ainda pensei abrir a janela, entrava-me um bafo de calor mas soprava-lhe um comentário gélido, de circunstância. Mas o que é que se pode dizer a um vizinho de calções e tronco nu?, “então vizinho, a passear o cãozito, não é verdade?" Ele devolvia-me uma resp
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Caselas, Lisboa, Outubro 2019, final da tarde.

Lisboa adúltera

Bastaram-me trezentos metros a descer a rua do Alecrim e assomar cá ao fundo na rua de S. Paulo para perceber o que se está a passar na cidade. Qual gentrificação?! O que se passa é bem mais elaborado e modernista. Não é a cidade, é o mundo inteiro a transformar-se, a caminhar para um futuro que ainda não conhecemos. Por isso viajamos tanto. Somos formigas ansiosas em carreiros low cost. Anda toda a gente a viajar para qualquer destino enquanto pode, enquanto souber viajar. Eu levava a cadela pela trela porque íamos ao veterinário ali em São Paulo. O passeio é estreito e os eléctricos passam rente, não se desviam - os eléctricos nunca se desviam - numa tira acanhada de calçada estragada, romântico decay como o turista gosta, pouco funcional e ao longo do novo pulsar do negócio urbano: tascas transformadas em lounge bar, outras em snack baguette, retrosarias que passaram a cash converters e paredes agora ATM onde antes havia multibanco. A cadela confinada a meio metro de trela, e