Transfake

O que se passou, o que esteve à volta da interrupção da peça do São Luiz na passada quinta-feira, pode ter sido uma questão bem mais complicada, ou talvez bem mais simples.

A acção da atriz-prostituta-transexual (assim se definiu) keyla Brasil, não foi um acto isolado, teve participação e conivência de uma boa parte da plateia, que estava lá para isso.

No vídeo que tem circulado nas redes sociais pode ver-se: a filmagem começa no momento em que Keyla, semi-nua, se levanta da cadeira. Uma câmara (telemóvel) de alguém sentado numa das filas dianteiras da plateia, aponta para trás, para captar o arranque, a descida da mulher ao longo da coxia central, gritando para o actor em cena "Transfake! Desça do palco, tenha respeito!”

O vídeo, na versão editada, é composto por 3 câmaras, três ângulos de enquadramento apontados à interveniente: a partir da plateia, lado esquerdo; da plateia, lado direito; e do balcão central. Num registo amador e informal, a “cobertura” do acontecimento denota algum cuidado profissional. Aquando da inflamada pregação de Keyla junto ao palco, há uma faixa vertical, com uns bons metros de altura, que é desenrolada e fica pendente do varandim do primeiro balcão. A faixa tem a palavra “transfake”. Durante a pregação de Keyla, ouvem-se alguns aplausos - de apoio, naturalmente - tão inflamados que mais estariam adequados a algum entusiasmo comicieiro, e não ao público de uma sala de teatro, denotando tratar-se de uma claque/acção organizada.

Alguns actores/actrizes voltam ao palco tentando amenizar a situação, o empolgamento de Keyla que entretanto se dirige directamente ao actor em causa gritando-lhe “André Patrício, por favor tenha ética, amanhã não retorne a este lugar!”

No entanto, a actriz Gayla Medeiros, a outra actriz transsexual no elenco, que a um canto aplaude a acção de ruptura do seu próprio espectáculo (!), usa da palavra, de punho erguido, justificando e empoderando o acto de Keyla Brasil, dizendo mesmo que tal acto vai ficar na “história de Portugal”.

A intervenção do São Luiz é indiretamente reivindicada pelo MONART (Movimento Nacional Artistas Trans) que já tinha emitido um comunicado contra a presença do actor não “trans”, mas “cis” - convém estarmos familiarizados com as nomenclaturas.

A questão do nome do actor/actriz a representar o minúsculo papel de Lola (a transsexual em causa) já era uma questão em aberto. As declarações do encenador já o apontavam. Portanto, tudo não terá passado de um pequeno ajuste de contas. O encenador Daniel Gorjão, sob a incómoda acusação de “transfóbico”, veio no dia seguinte ceder e substituir o actor em causa.

Eu fui ver a peça ontem, Domingo. Tinha um convite para a sessão da passada sexta-feira, a que faltei por dificuldades no trânsito, mas o convite foi generosamente estendido para ontem, último dia da peça em cena, acho.

Fui ver a peça, não fui ver a controvérsia nem a manif MONART à porta do São Luiz.

Sobre a controvérsia, o acontecimento, o que se me oferece comentar é o seguinte.

A transsexualidade é um estado, não é uma causa. O/a transsexual é a pessoa que operou ou está a operar uma migração física e/ou de identidade de género, entre dois sexos. Tirando essa especificidade - ou não obstante essa especificidade -  o/a transexual é uma pessoa normal, com os mesmos direitos e deveres de qualquer cidadã/ão cisgénero, incluindo o direito a ser preterido em qualquer candidatura de trabalho, emprego ou tarefa, artística ou outra, por qualquer decisor ou empregador (no caso pendente o encenador e a companhia teatral) que com fundamento ou sem razão, a exerçam, nos limites da aplicação das leis laborais. 

Um encenador pode pôr um actor homem a fazer de mulher, um branco a fazer de preto, um não fumador a fazer de fumador, um vegetariano a fazer de carniceiro de churrasco, tudo isto ou o inverso, por opção e valorização da intensidade dramática ou outra.

Tudo isto já aconteceu milhares de vezes no teatro e nas artes performativas e continuará a acontecer graças a deus.

A questão central, o erro de Keyla Brasil e do MONART, é o de confundir representação com representatividade.

Qualquer encenador, qualquer companhia de teatro, é livre de escolher o elenco. O público vai ver (ou não) e se gostar bate palmas e recomenda, se não gostar vem-se embora e critica ou apupa.

Interromper uma peça, abortando um espetáculo, sob o pretexto de que este não devia ser o actor - “desça do palco, tenha ética, desça do palco!” - gritava Keyla, é um acto ignóbil de violência sobre um trabalho artístico/cultural. Baixo, indigno de memória longa, muito menos de ficar na “história de Portugal”, como na visão de Gayla Medeiros.

Na memória ficará apenas, e durante alguns dias, este triste gesto de cultura de cancelamento que, a repetir-se de forma mimética e consistente, irá levar a que os boinas da associação de comandos exijam ver actores seus nos papéis de soldados da guerra colonial; frades, freiras e monges em peças do Gil Vicente ou do Almeida Garrett; zarolhos a representar Camões; e tudo o mais a que o decalque representativo nos possa levar a imaginar.

Este wokismo, este justicialismo de plateia levará também a que cada companhia de teatro tenha que contratar policiamento e segurança para a boca de cena de cada espectáculo, sob pena de qualquer eventual representação teatral não ter garantido coerência com qualquer outro eventual grupo de espectadores ou cidadãos. Não apenas no elenco mas também na dramaturgia, nos figurinos, nos cenários, nas falas, em tudo o resto - “há que deitar abaixo a arte de que eu não gosto, ou não concordo!”

Espero que não.

Espero que a actriz Gayla Medeiros nunca tenha razão.

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