Consulta Externa

 O cenário é o consultório médico de um hospital público, teatralmente reproduzido. Em jeito de didascália, adianto que nada me move contra o serviço público de saúde; pelo contrário, admiro-o e gabo-lhe a temeridade de ir conseguindo resistir às adversidades. Regressando ao espaço cénico da minha consulta externa. Depois de substancial tempo de espera - faz parte! - sou chamado ao gabinete. Entro, “bom dia, dá-me licença?”, “faça favor de se sentar!” e aponta com a esferográfica para a cadeira em frente, levantando o olhar pouco acima dos meus joelhos. Sento-me. Acomodo-me, sabendo que vou ser recebido mais como um vulto que traz um episódio clínico, que uma criatura que merece simpatia e atenção. Conheço bem o burlesco dos minutos que se seguem. Olho demoradamente a médica à minha frente, sei que tenho tempo para me divertir, para confabular pormenores, antes que ela me dirija um primeiro olhar e atenção humanizada. Parece-me uma mulher sombria e velha. Veste-se como uma velha, uma pulseira que lhe chocalha no pulso, pouca agilidade no teclado, dificuldade e lentidão na gestão das janelas que se lhe vão abrindo no ecrã, a cuja imagem não tenho acesso. Esta desprezível velha à minha frente é seguramente mais nova que eu. Acresce-lhe aquela riqueza que lhe atribui maior frescor, é detentora da chave, da interpretação da minha saúde. Mais nova, em idade, mas mais velha em tudo o resto. Que mulher será esta velha? Certamente terá vida para além das rotinas clínicas que vem aqui prestar, à pressa, três manhãs por semana. Que vida será? No intervalo de duas consultas deve ligar à empregada a relembrar-lhe que tempere os bifes antes de sair, que deixe dois dentes de alho descascados. Será mãe de filhos adultos, talvez seja avó. Alguém se deitará ao lado dela todas as noites, ambos fatigados, sem ardor para partilhar outras ânsias. Ao fim do dia chegará a casa cansada e deixará o carro ali à porta de uma qualquer moradia em Oeiras ou de um duplex na Nova Portela. Esta médica será tudo isso ou talvez o contrário, pouco importa. O mais relevante foi eu ter ocupado estes minutos de incomodativo silêncio num divertido solilóquio motivado pelo burlesco de quem desconhece as regras básicas de atendimento e cortesia. Até que a personagem dispara a primeira fala: - 64 anos! Já foi alguma vez operado? - Sim, doutora, há muitos anos, a uma hérnia cervical que por acaso até… - Tem próteses? - Não, doutora. - Que medicamentos toma? - Nenhum, doutora. Felizmente não tomo medicamentos! É nesta altura, sempre neste momento da consulta, a que me habituei a chamar o fim do prólogo da representação, que se inverte a relação hierárquica entre as personagens. Em todas as consultas, este é o momento em que o médico ou a médica pousa os óculos de leitura e me olha finalmente nos olhos. Está sentenciado o “arco das personagens”. É também o momento em que esboço um sorriso tão ligeiro e rarefeito quanto me é possível, disfarçando o prazer na inversão de papéis. Ali, dois personagens confrontados num instante visual e sem falas, desdobram-se em silenciosos mas expressivos pensamentos. Eu penso, “sim, sou um privilegiado. Não sei durante quanto tempo mais, mas até agora a vida tem-me sido grata; jovial de cabeça e até de corpo, “so far, so good” Enquanto ela, “andei anos a queimar as pestanas, a estudar clínica, e chego aos 59 cheia de mazelas. Não me livro da sinvastatina, do lopressor oral, da glucosamina para a osteoartrite, da progestina para a amenorreia e até do lorazepam ao deitar; e vem-me agora esta carcaça de 64 anos, entupir a consulta externa com a historieta de uma dor inflamatória no pé, que lhe estraga as caminhadas!” Cai o pano. A ovação é só minha, ninguém mais está lá para aplaudir. Mas “so far, so good!

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