A Caixa de Fósforos
Aquilo que mais me encantou na “Caixa de Fósforos”, o livro de Nicholson Baker, quando o li há uns anos, foi a capacidade do escritor de nos impor a obrigatoriedade de pairar demoradamente sobre o tempo parado da narrativa.
O romance conta a história de um homem que todas as manhãs, muito cedo, acende a lareira e prepara a casa para acolher o frio dos dias, sempre envolvido em pequenas tarefas que lhe afogueiam longos pensamentos, que vai narrando. O gesto de riscar um fósforo para a lareira pode ser uma tarefa que, na minúcia do escritor, rende um capítulo inteiro de literatura.
A escrita infiltra-se nas frestas de um tempo que não existe, como num efeito cinematográfico de “time freeze” onde a acção parou, os intervenientes paralisaram, mas nós continuamos a andar por lá, alongando-nos na observação do momento. O que requer uma escrita de fragmentação, tão oposta aquela outra que impõe velocidade à narrativa com o objectivo de chegar rápido ao sumo do enredo, da trama, ao desembaraço da acção. É como viajar à solta num tempo parado, numa navegação de memória pelos interstícios reticulares do tempo. Penso nisso muitas vezes. Por exemplo, quando de manhã me envolvo no automatismo de preparar o café.
Por isso hoje decidi contar os gestos, os tiques que requer esta empreitada matinal de fazer café. Anotei-os no pequeno caderno onde guardo outras futilidades. São exactamente 49 passos desde o primeiro toque na cafeteira eléctrica até ao momento em que a chávena quente me toca os lábios .
Quase cinquenta pequenos movimentos, micro-tarefas, aberturas e fechos, giros e rodeios, alcances, abduções, afastamentos, impulsos e toques, que pratico ainda ensonado e de forma quase automática, instintivamente, onde a coordenação motora age independentemente do cérebro ainda semi adormecido.
Depois do café, mais desperto, consultei as notas. O passo 14, por exemplo, refere o momento em que a pequena colher de madeira, em forma de pá, retoma o seu lugar dentro da lata, enterrando-se na moagem, empinada, em estaca, evitando que o cabo táctil onde os dedos deixam marca, contacte o pó enxuto.
Já os passos 20 e 21 referem momentos sensitivos: o primeiro é sonoro, quando começa a soar na máquina o gorgolar da água em fervura; o outro é olfativo, quando se sentem pela casa as exalações do aroma da bebida.
Esta fruição sensorial teve que ser acompanhada por uma outra ousadia, a de retirar para local inacessível a máquina nespresso. Renunciei à tecnologia do café de cápsula por razões ideológicas, ambientais, comerciais e outras. Agora regressado à envolvência bucólica que emerge desta história, revejo-me no gozo de me ir apeando de mecanizações excessivas. Da mesma forma, não haveria obra literária se porventura o protagonista de Nicholson Baker tivesse em casa ar condicionado em vez de lareira.
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