Quando são as memórias a lembrar-se de nós...
Saíamos do cinema às três da manhã e ainda íamos à Alga comer um bife. O Quarteto tinha sessões da meia noite, dois filmes de culto que só cabeças refrescadas como a do Pedro Bandeira Freire conseguiam aguentar - um Agnès Varda e logo a seguir um Visconti, por exemplo. A Alga era pouco mais que um balcão corrido. O Loja Neves anotava tudo num caderninho de goodies que, se ainda o tiver, valerá milhões. O Loja fumava demais. Cigarros sem filtro. Português suave, acho.
Já não me lembro como é que o Zé Velho ia para casa nas sextas à noite. Morava em Odivelas. Nos outros dias saía do cineclube e apanhava o último metro na Avenida, ao fundo a rua do Salitre. Andava de cabeça perdida com a história da fauna social que povoava o último comboio para Entrecampos - seguranças, operários da noite, prostitutas, intelectuais, boémios, empregadas da limpeza, etc. Já toda gente se conhecia. Entre a Rotunda e o terminal de Entrecampos eram uma família. Queria reduzi-los a um guião. E nós já lhe tínhamos encontrado um título para a versão internacional, “The Last Train to Between Fields”.
O Mário saía menos connosco à noite. Morava em Sintra em casa dos avós. Numa tarde de sábado fui visitá-lo. Lembro-me do ar faustoso da casa apalaçada, tapada por heras e colunas de pedra ofuscadas por uma pátina de líquens, e um jardim que subia em socalcos até se misturar com a serra. Nesse dia inventámos uma nova corrente estética, ideológica e cinematográfica. Chamamos-lhe “neo-revanchismo”. O neo-revanchismo durou uma tarde, matámo-lo no dia seguinte. Conseguimos ser ainda mais expeditos a renegar a própria criação que o Lars Von Trier no Dogma 95.
Perto de Sintra vivia também o Tátá - ainda não tinha saído do armário - chamávamos-lhe Nosferatu de Galamares. Gostava de cinema e de ilusionismo. Um dia desapareceu num truque de close up.
Eram estas as nossas expedições punitivas.
Estávamos em que ano? Não sei exactamente. Mas nessa altura, num outro ponto da cidade, sem que o soubéssemos, estaria o Dinis Machado a bater à máquina O que diz Molero.
Num dia normal eu saía das aulas do Alpern ou do Esperança Pina, no Campo de Santana, ignorava a provocação de ofertas pagãs à volta da estátua do Sousa Martins, ali mesmo ao lado, e entrava no Instituto Alemão, junto ao Patriarcado. Papava logo uma dose pesada, um Murnau, um Dreyer, um qualquer expressionista alemão, com sorte saía-me um Fassbinder. Depois descia as escadinhas do Lavra e vinha cá a baixo ao Palácio Foz aviar um ciclo da cinemateca. Aí conseguia habitualmente melhor cinema. Foi lá que apanhei todos os Bergman. Senti-me possuído pelo Personna e pelo Silêncio. Quando jogávamos à bola, no “enconansus corner”, o pessoal costumava dizer que eu só gostava de “cinéma problème”, enfatizando a expressão, com intenção pejorativa, na adequada “prononciation française”. O pessoal falava francês nessa altura. Mas era o sueco da Liv Ulman que me deixava sem fala.
Depois subia no elevador da Glória para o Bairro Alto e ia para as aulas do Conservatório, na Barroca. Tive que anunciar aos meus pais que tinha desistido de medicina e ia agora estudar cinema. Não foi fácil fundamentar tal ruptura. Mas eu tinha os melhores pais do mundo e consegui distraí-los com a questão da orografia.
- Mas, filho, tu tinhas dito que querias ser médico psiquiatra, depois de teres visto o Family Life do Keneth Loach, que tanto te tocou... e nós estávamos preparados para te apoiar em tudo.
- Sim, mas... aliás, eu deveria ter-vos dito que queria ser “anti-psiquiatra”, porque é isso que advém do Family Life e das ideias do Cooper e do Ronald Laing.
- Bem, filho, conta connosco no que precisares. Tu és o nosso único filho. Tu és o nosso amor.
O pretexto da orografia colhia sempre. Assentava no mito romântico-urbanístico da “Lisboa das sete colinas” - do alto do Campo de Santana eu tinha descido ao vale dos Restauradores e subido ao Bairro Alto; duas colinas já estavam superadas e tinha assim criado uma necessidade, uma fatalidade de movimento.
Em Alvalade o Loja Neves continuava na Alga a fazer rabiscos num caderno sebento onde guardava pensamentos afrancesados, mais uma Seara Nova e um Tempo e o Modo debaixo do sovaco. Continuava a fumar português suave sem filtro e queria trazer o Joris Ivens a Portugal.
Eu andava “apanhado” pelo documentarismo britânico. O Grierson e sobretudo o Alberto Cavalcanti com a história do “se quiseres fazer um filme sobre os correios, não faças um filme sobre os correios, faz antes um filme sobre o percurso de uma carta”.
Decidi fazer a adaptação cinematográfica do Sredni Vashtar. Andei uns dias naquilo. Depois de feita guardei na gaveta. Ainda aqui está, generosamente arquivada. Hoje, o que mais admiro no opúsculo é a marca deixada pela máquina de escrever Olivetti que já naquela altura batia com fita a duas cores, preto e vermelho.
Tinha nascido o vídeo. Na escola de cinema já tínhamos U-matic, três quartos de polegada.
No Conservatório, o João Miguel Fernandes Jorge mostrava-nos diapositivos. Parava sempre no mesmo, num que tinha duas maçãs. Deixava que a sala tombasse num longo e incomodativo silêncio e quando sentia a agitação dos rabos nas carteiras, avançava para o slide seguinte, fazendo um comentário lacónico “este é o caso mais exacerbadamente romântico de que há memória”.
O António Reis, o do Trás-os-Montes, chorava e batia-nos nas mãos quando, à moviola, não acertávamos nos raccords de luz. O Ricardo Pais obrigava-nos a tocarmo-nos, para vencer as barreiras territoriais e tácteis do corpo, para que pudéssemos compreender que a dramatização trespassa desde o infinito distante até à pele. O APV, o Geada, tantos outros… O ambiente ecléctico de escola de artes, a cumplicidade entre alunos de cinema, música, teatro, dança, educação pela arte. Tudo veio a ser copiado mais tarde na série Fame. Fomos nós na rua da Barroca que inventámos esse engenho. E éramos muitos. O Pedro Costa, dos Ossos, por exemplo, também lá estava. Será que se lembra?
Por falar em Costa… um dia troquei de horário com o outro Costa, o da RTP. Mandei-o para casa e fiquei a trabalhar por ele à noite. Não me esqueço, foi no 7 de Março de 1980. Às oito da noite começava o Telejornal e eu tinha que cumprir o que estava determinado no alinhamento da emissão: “abrir a fase do burst”. Rodei o botão negro e serrilhado, pressionando com o polegar direito. O botão cedeu 45 graus, ajustou-se à nova posição, onde ainda repousa, se existir. Tinha assim começado a televisão a cores em Portugal, no meu dedo.
Bem, tinha começado antes. Nós abríamos o burst durante segundos, às escondidas, e voltávamos a fechar. Fazíamo-lo a horas combinadas para impressionar as namoradas em casa. Era a nossa leitura de “período experimental”. Combinávamos tudo, ligando da cabine telefónica do pátio, por cima da “estalagem do cavalo branco”. Ainda não havia telemóveis.
Aliás, a cor tinha começado ainda antes. Quando toda a gente foi à Pollux comprar os filtros de gelatina que davam cor aos televisores a preto e branco. Era um gradiente de azul, amarelo e verde, que atravessava de alto a baixo o vidro do cinescópio. Prendia-se com fita cola. Funcionava lindamente nas imagens de paisagens e nas séries do Bonanza e do fugitivo, mas tornava-se incomodativo em cima da cara da Maria Elisa e do Raúl Durão, coitado, que já não está connosco.
Isto foi em 1980. O mundo não pára. É uma vertigem.
Eu nunca deixaria de ir ao cinema e nesse ano os meus filmes de culto foram, se a memória não me atraiçoa, o Apocalipse Now, o Homem Elefante e os Blues Brothers.
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