Magnus Bergstrom e um pequeno rebate xenófilo


Em boa verdade eu não sei quem foi Magnus Bergstrom (o nome leva um trema por cima do "o", que aqui declino porque não o encontro no teclado) mas assumo que tenha sido um linguista, um filólogo, um especialista em língua portuguesa; conhecido da maioria, talvez, sendo que apenas eu, que tenho andado a tratar da minha vida por outros lados, a mim me tenha escapado. Ou talvez tenha sido “apenas” um respeitável académico, um investigador fechado num gabinete ou numa sala de aulas.
Ainda que desfazer essa dúvida possa estar à curta distância de um click de google, eu prefiro não o saber, prefiro quedar-me a imaginar que Magnus Bergstrom é o homem com quem simpatizo.
Cheguei ao nome dele porque ressalta na capa do velhinho Prontuário Ortográfico que uso frequentemente como ferramenta indispensável para qualquer escrita - escrita é qualquer coisa que se ponha no papel, até um mail de resposta à companhia de seguros merece ser redigido em bom português - o recíproco, na troca de correspondência, já não é verdadeiro: “o cliente irá rececionar uma carta… onde o conteúdo por defeito…”
Eu uso uma edição velhinha e amarelada, datada de 1975, que serve muito bem, vai-se aguentando ao manuseamento e resiste às recentes tiradas contra-revolucionárias que têm desferido sobre a ortografia.
Cada vez que pego no velho prontuário lá está aquele nome estrangeiro, um dos autores da obra, um nome tão agradavelmente dissonante na fonética da minha língua. Foi isso que me chamou a atenção. Simpatizei com a diferença. O que também pode configurar um pequeno episódio de xenofilia.
O bom manejo da língua é um exercício exigente mas que merece ser exercitado em toda a parte. Aqui, por exemplo. Abro uma mensagem: “obrigado por ter aceite o meu pedido de amizade”. Fico logo triste quando a amizade começa com uma falta ao primeiro encontro marcado. Será que eu deveria responder de imediato, ferindo a amizade recente, assumindo frontalidade, quase arrogância, mas explicar “não é ter aceite, mas sim ter aceitado.”?
Outra coisa que verdadeiramente me encanita é a troca do verbo “dizer” pelo “falar”. Não sou mesmo nada transitivo a este “brasileirismo”: “...você falou que vinha cá na semana passada, mas não apareceu!” - claro que não pus lá os pés, a falarem comigo dessa maneira!
Cresci em redacções onde havia sempre três ou quatro “bíblias” sobre a secretária: o dicionário, a gramática, o prontuário ortográfico e o livro de estilo. Melhor, nalgumas o livro de estilo não existia em papel, era cantado, estava-nos na cabeça e na alma. Por exemplo, naquele tempo, ai daquele que no próximo mês de Maio viesse aqui chamar ao Papa “Santo Padre”, sabendo que estava a escrever para um universo laico.
Hoje tudo é diferente. Quando se escreve temos na tecla ao lado o Priberam ou a Diciopédia, o corrector de texto e o auto-complete, o Ciberdúvidas e a Wiki, ou qualquer App apropriada. Ainda assim pouca circunspecção e dejúrio merece o tratamento da nossa língua.
Lembro-me, uma tarde eu estava numa cidade de província do Paraná, já próximo da fronteira com o Paraguai, e alimentava uma conversa prosaica com uns conhecimentos recentes. Tudo gente local, brasileiros filhos de imigrantes ou imigrantes de segunda geração - ou melhor, colonos, porque no Novo Mundo o conceito de imigrante não é coincidente com o que temos aqui na Europa. Naquela tarde, assim eu tivesse guardado uma fotografia do momento, seria marcante analisar a diversidade de fácies nos interlocutores da conversa. Eu estava ali a falar com um lívido japonês; com dois loiros, um alemão e outro polaco; com outro mais escurinho, que era indiano; também um nordestino; um negro baiano; e acho que havia ainda um russo ou eslavo leste-europeu. Que torre de Babel... era como se tivéssemos reunido um mundo inteiro. Um mundo apartado pelas diferenças étnicas mas agregado por dois elementos sagrados que ali partilhávamos: o solo fértil que pisávamos, o solo brasileiro; e a plasticidade, a riqueza de uma língua comum, a língua portuguesa - qual esperanto, a minha língua! Todos ali, ligados, e era o meu lastro linguístico, o que me corre nas veias, que nos viabilizava a comunicação. Senti-me naquele momento acometido de um natural ataque de pieguice, difícil de justificar perante a amálgama de portadores de diferentes costumes e sentimentos - que orgulho patrimonial.
Por isso, Magnus Bergstrom, Carolina Michaelis (também ela leva trema), Lindley Cintra, Elza Paxeco, Lúcia Lepecki (e outros tantos que eu certamente desconheço), a todos muito obrigado pelo trabalho que dedicaram à língua portuguesa; quer tenhais nascido estrangeiros ou sejais portugueses de ascendência alienígena. Vós alimentais aqui o meu rebate xenófilo, que é igualmente um sentimento nobre e oportuno nos dias que correm, em que a aversão ao que é estranho e distante, nos predomina no pensamento.
Vós, para mim, sois como se um amigo de longe nos tivesse vindo ajudar a arrumar a casa.

Bem hajam.

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