O transplante e o desplante
Faltam seis meses, pouco mais, para que uma pequena equipa médica, em representação desse enorme lastro parental a que chamamos “toda a Humanidade”, proceda ao primeiro transplante de cabeça... que, de facto, consiste exactamente no inverso: uma cabeça vai receber, por transplante, um corpo inteiro. Um russo, de apelido Spiridonov, que sofre de atrofia muscular espinhal que lhe torna o corpo inútil, irá receber, em Dezembro, o corpo inteirinho de um qualquer dador, alguém funcionalmente saudável mas em morte cerebral.
O neurocirurgião italiano que anda há 30 anos a preparar a aventura, vai cortar a cabeça ao russo, arrefecê-la, colar cabeça boa ao corpo bom (vai demorar dia e meio e envolver 150 pessoas), deitar fora o outro par que não presta (cabeça e corpo estragados), e manter o novo indivíduo "recapitado" em coma induzido durante mais de um mês até a coisa estabilizar, para depois, se tudo correr bem, o senhor Spiridonov "ir" pela primeira vez à sua vida. Oxalá que sim.
Os pormenores da intervenção cirúrgica (lidos por aí), sendo de um inexcedível rigor científico, soam-me descomunalmente mórbidos. Mais tenebroso ainda, porque preocupante, é tudo o que lhe está por detrás, ou à frente; ora visível, ora dissimulado:
- a ciência e a tecnologia que já permitem fazer tudo, ou quase tudo;
- a ética que nos obrigaria a parar para pensar, mas infelizmente não temos tempo;
- algum mercantilismo (médico, entre outros) que se escapa pelos interstícios da ética e da regulação, oferecendo todas as soluções de "vida" a quem quer seja, desde que bem pagas;
- o livre arbítrio, que todos reivindicamos, de podermos fazer do nosso corpo aquilo que quisermos, até mesmo transformá-lo num bizarro “não-corpo”.
Começámos por achar normal retirar do corpo os sinais de deselegância e de envelhecimento - botox, plásticas, silicones, implantes. Também é normal e desejável substituir órgãos que deixaram de ser funcionais. Depois é aceitável não aceitar envelhecer. E, em última análise, não morrer. (Não valerá a pena ir procurar na ficção, na literatura, “saramaguista” ou outra, histórias premonitórias sobre o desaparecimento da morte).
A um outro nível: é aceitável resolver conflitos de identidade. Mudança de género - de homem para mulher, ou o inverso; mas até de homem ou mulher para nada, para assexuado, isto é, para “sem género”, apenas por opção.
Há ainda a clonagem, os estaminais, e tudo o que no limite se pode fazer, com dedo apurado, nas biotecnologias. E por aí fora...
Quando analisadas caso a caso, (quase) todas as intervenções são legítimas porque resolvem problemas, salvam vidas, poupam conflitos de identidade. Mas vistas em abstracto, como "tendência", muitas parecem actos contra-natura, ainda antes que alguém saque dos argumentos e das incidências religiosas.
Era bom que parássemos um bocadinho para pensar sobre estes assuntos - todos nós. Para termos ideias claras acerca dos limites que nos devemos impor. Ou não devemos impor limites?
Devíamos falar sobre isto.
Eu por mim estou disponível neste fim de semana. Não sei como estará a agenda do resto da Humanidade, mas como é dia de futebol, temo que o assunto ainda não fique resolvido desta vez.
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