sexta-feira santa
Claro que é rebeldia esta forma como exacerbo alguns comportamentos.
Puxo conversas sobre pitéus de cabidela ou costeletão de novilho, quando vou jantar a casa de amigos vegan; se educadamente me pedem que me abstenha de referir atrocidades animais, que razões ideológicas os impedem de falar sobre o assunto, eu disparo então sobre estudos científicos que provam o sofrimento do vegetal à beira da mastigação: a rúcula e o coentro que se apercebem da morte ao ver chover o tempero sobre a saladeira; a couve coração que perdeu a vida, inglória, no ritual de um festim sem glúten.
Também por rebeldia, esta é a única sexta-feira em que não prescindo de me banquetear com enfartados rodízios de carne vermelha.
Desnecessário, eu sei. Mas assim sou eu, Maria da Graça, portuguesa de 52 anos, moradora em Arroios - essa espécie de Tribeca lisboeta. Contraí o ateísmo em tenra idade. Valeu-me ter nascido filha de pais tolerantes, moldados pelos anos do amargo reviralho, que me aceitaram como sou, por amor, e contra a opinião do Dr. Passos do centro de saúde, que sempre lhes disse “levem-na a Fátima, pode ser que isso lhe passe” - o Passos morreu dois anos depois, de cancro do pâncreas, fulminante.
Muito nova, mas já rebelde, saí de casa e andei perdida durante meses na América do Sul onde cheguei a infectar-me de marxismo. Primeiro, na Argentina, na versão trotskista; depois, mais acima, na versão bolivarista, talvez mesmo guevarista, por causa de um gadelhudo de barba rala por quem me apaixonei em Machu Picchu. Um amor que durou quase dois meses.
Mais tarde e mais a norte, a persistência solar, alguma tequilha e a diversidade cromática, levaram-me a abandonar a causa “obrera” e aproximar-me definitivamente das manifestações do livre pensamento artístico. Andei pelas Artes e pela libertinagem moral - de onde nunca saí, em boa verdade. Alimentei na altura, um particular apreço por Frida Kahlo, ou por aquilo que ela representava, principalmente o desprendimento pelo corpo, a forma de o deixar viver, a ousadia de o libertar de atavios - a versão monocelha, por exemplo, sempre me fascinou.
Valeram-me os anos em que me senti possuída desse encantamento, até regressar a casa onde iniciei esta existência cinzenta de onde agora vos escrevo - mais anémica que académica - de uma modesta professora da António Arroio.
Aqui estou, hoje, sendo o que sou e fazendo a gestão possível do que aprendi e por onde passei.
E lembrei-me: que pena, na altura, naquele tempo, não ter tido atrevimento para subir ainda mais em latitude, e ir perder-me na generosidade dos costumes do Midwest, aprendendo aí os fundamentos da pós-modernidade política, tão actuais e que tanta falta me fizeram nesta última semana. Bem podia ter aqui opinado sobre a miudagem de Torremolinos, os gays da Chechénia, o Canelas, o Samaris e os cânticos da claque do Porto, ou a madrasta de todas as bombas e a sobremesa de chocolate do Trump antes do ataque à Síria.
Sendo que “pós-moderna” é mesmo (mais que a qualidade dos temas a debate) a forma como todos aderimos à narrativa fragmentada, à rejeição da linearidade, no modo como lemos a actualidade. Espezinhamos cada assunto com dois likes e um comentário, saltando depressa para o tema seguinte, que se faz tarde e que a actualidade é o AGORA, todo o resto já foi.
Hoje, graças a deus, lá me ligou pelo fixo, a tia Eugénia, de Grijó de Parada, a única irmã ainda viva do avô Lourenço que deus tem. Ela, alheia a pós-modernismos, mantém-se agarrada às narrativas lineares, sem que nunca tenha lido Proust, Virginia Woolf ou James Joyce.
Para a tia Eugénia, adaptada a esse solilóquio transmontano que cultiva e mede a passagem dos dias, há o Entrudo, segue-se a Quaresma e depois vem a Páscoa - e esta previsibilidade sequencial alimenta-a a em Felicidade, que inveja.
E pensei cá para mim: “se as pessoas me ligam, se são atenciosas e simpáticas, é porque se preocupam comigo e me querem ver feliz. Deixa estar, então. Por isso lhe agradeci e retribui: páscoa feliz também para si, tia Eugénia!”
Mas fiquei a pensar, inquisitiva, o que quererá dizer isso de “páscoa feliz”?
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