Jactância cristã.


Ontem falhei o RIP ao Armstrong porque não estava cá.
Sim, ao Neil, não ao Louis! ...esse, ainda não havia murais para partilhar RIP, na altura.
Ontem foi pena, porque tudo o que toca a lua mexe com o meu, o nosso, imaginário.
E o homem tocou-lhe, literalmente.
O primeiro humano a chegar a três sítios: à Terra, à Lua e ao Céu. É obra!
RIP para ele, pois então.
Mas continuo desconsolado com esta coisa dos RIP digitais.

Não pretendo ofender o sentimento e a memória dos que nos deixam. E medo da morte, tenho-o, sim. Mais do que da minha, da dos que me são queridos e próximos... e sei do que falo.
Respeito, portanto.
Mas, ainda que possa soar desconcertante, acho que devo dizer o seguinte:

Primeiro, o RIP na comunicação da vida real não existe.
É uma invenção das funerárias, dos lapidadores de mármore, que depois passou para os jornais e para o resto da comunicação social. Agora, condensado, diria mesmo, liofilizado, na muralha digital, torna-se aflitivo.
Faz crescer uma ansiedade miudinha... todos sabemos que os RIP não param.
Enquanto andam lá longe, nos Grammy, nos Oscar, nos prémios Nobel, a coisa funciona.
O pior é quando se aproximam... e haverá um dia que nos virão bater à porta, ou à porta de alguém muito próximo e querido... Aí não haverá lugar para RIP nem murais... haverá dor verdadeira. Haverá perda.

Digamos que o RIP vale como evocação momentânea, pontual e social.
Mas fracota, acho eu.

O RIP serve para mostrar aos amigos que acompanhamos a actualidade.
Partilha-se uma cançoneta do homem, e fica o mural cheio de you tubes todos iguais.
Saca-se da estante o livro que o celebrizou, que fica uns dias em cima da mesa baixinha do cinzeiro, e está cumprido o equivalente gestual do RIP.

Mas há outra coisa.
O que me faz verdadeiramente confusão é que o RIP é uma coisa desajeitada do lado semântico. “Rest in peace” não é um conceito universal e abrangente para os que ainda cá ficam.
Suspeito poder tratar-se de uma jactância cristã, exportada para todo o planeta.
Para os ateus, por exemplo, não se aplica nenhuma das palavras do sintagma: - nem o “rest”, nem o “peace”, e muito menos o “in”. É certo que os ateus não contam, são poucos e esquisitos.
Mas vejamos, por exemplo, os muçulmanos, que são éne: “Rest?”, como assim? Poderá haver descanso no meio de tanto leite e mel? ...E as virgens a passar de um lado para o outro? (no offense meant, ok? Salaam!).
E depois, as outras religiões?
Já alguém perdeu tempo a pensar no valor da morte (ou da “vida” além dela) para um nuwaubianista, um devoto da Nação de Yahweh, um cientologista, ou até um fiel servidor do Templo da Psychic TV?
Qual é o argumento? São poucos, não têm assento no debate? – Isso é por cá, nas eleições.
Pensem no exemplo da Dra Chris Korda, de Boston, que fundou a Igreja da Eutanásia que preconiza aquilo que já se adivinha... e reza ao deitar um equivalente ao “Pai Nosso e Ave Maria” que se chama “Save the Planet, Kill Yourself”. A mim esta religião merece-me igualmente respeito, distanciando-me, claro está, da parte do canibalismo e da sodomia. Mas quando a Dra Chris Korda morrer, daqui a muitos anos, espera-se, porque ainda é nova e bem simpática, o que iremos nós escrever no mural dela? “RIP Korda”?
Por amor da santa!...
Bem, fico-me por aqui, porque essa do “por amor da santa” também é outra!...

Comentários

Stargazer disse…
Não querendo de forma alguma parecer Glenn Close em Atracção Fatal, até porque não mato coelhinhos e de "stalker" tenho pouco, a tua escrita é - sem sombra de dúvida - uma delícia. Quando sei que te vou ler, sinto as células cinzentas do cérebro aos saltos de prazer antecipado, como quando as papilas gustativas salivam quando cheiro sopa de tomate ou de espargos, um reflexo pavloviano inexplicável da minha (fraca) condição humana. E agora que descobri este maná, não me canso. Haja saliva!

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