A parabólica


Serafim já tinha trabalhado na manutenção, já tinha experimentado ser motorista e assistente de reportagem, mas pediu para voltar ao emissor. Em Monsanto o trabalho era bem mais calmo. Longe do frenesim dos estúdios é que se sentia bem.
É certo que as ajudas de custo e as refeições – às vezes em restaurantes onde Serafim nunca teria entrado se as despesas não estivessem cobertas – eram um complemento importante. Mas nada se comparava àquele sossego de Monsanto. E havia a leira do feijão, cebola e nabiças, que lhe deixavam cultivar na parte baldia do centro emissor. Isso dava-lhe muito prazer e rendimento.        

Comentava-se no Lumiar, por inveja ou maldade, que o trabalho no emissor era mais ou menos como ser segurança ou andar na emergência médica – se está tudo bem, não há nada para fazer.
Serafim, que gostava de ser respeitado, sabia que era injusto pensar assim.
Primeiro, porque atribuía a devida importância à sua categoria profissional, que gostava de evidenciar:
- “Técnico de Operações e Instalação, escalão B, o que equivale ao nível 9 na grelha salarial do Acordo Colectivo de Trabalho, com o segundo escalão da progressão horizontal, por mais de 5 anos de antiguidade na função” – Um estatuto profissional nada despiciente, a não ser na contrapartida monetária.
Depois, porque tinha consciência que as funções que desempenhava eram de importância vital para a empresa – de muito mais responsabilidade do que muitos lhe atribuíam, principalmente o seu chefe, o engenheiro.

Serafim tinha à guarda dois emissores e o feixe de reserva, que dava ligação a Montejunto e seguia para Espanha, por onde passava o sinal da eurovisão e a troca de noticias – as EVN. Um circuito de muita responsabilidade porque era utilizado pelo telejornal. Se alguma coisa ali falhasse havia de ser o pandemónio.
Todas as manhãs Serafim fazia medições nos circuitos, invertia feixes para testar o sinal, enviava o “dente de serra” no circuito de vídeo, e os “mil ciclos” na linha de áudio. Testava o “quatro fios”, o circuito telefónico de coordenação, para garantir que estava inteiro... e quantas vezes não estava, por culpa, claro, da companhia dos telefones.
Tarefas de enorme especialização a que ninguém parecia atribuir valor. O trabalho nos feixes estava em depreciação porque vinha aí a transmissão por satélite.

A empresa tinha recentemente admitido uns engenheiritos novos. Vinham por causa da televisão a cores. Novas comunicações, mais electrónica, mais circuitos e ligações internacionais. A rapaziada já por lá andava. Traziam o curso de engenharia electrónica. Pouco ou nada pareciam saber de televisão. Andavam ainda às apalpadelas, mas já ganhavam o dobro de Serafim.
A eles tinham sido confiados os novos equipamentos, nomeadamente a recepção de satélite, que ameaçava tornar alguns feixes obsoletos.
No centro de tanta ostentação estava a parabólica, que já era a coqueluche do emissor.

- Capta 3 satélites com uma potencia de recepção de 6 Giga Hertz - gabava-se o director do centro, num discurso que Serafim já conhecia de cor. O engenheiro debitava-o, inalterado, cada vez que conduzia as visitas na curta excursão em redor da poderosa sapata de betão, dois metros de altura, que suportava a parabólica.
- É o futuro das telecomunicações. O prato de 5 metros veio de Inglaterra, por barco... – e Serafim antecipava o resto, mimético, num sussurro irónico  - “...absorve um campo electromagnético admirável, graças à directividade do foco e à impedância de entrada. Os testes de propagação que temos feito indicam-nos que o padrão de irradiação e o coeficiente de ondas estacionárias é muito satisfatório, não ultrapassa os 30 metros.”.

Serafim mostrava pouca paciência para este tipo de conversa triunfante. Não tinha medo da modernidade, nem da tecnologia, nem dos satélites. Muito menos poderia ter inveja de uma parabólica.
– Que venham as parabólicas e os satélites... É para o lado que eu durmo melhor. Só gostava que respeitassem o meu trabalho. – Gostava de desabafar.

Assim se iam passando os dias no centro emissor de Monsanto.
Não se pode dizer que Serafim andasse radiante com a forma como o emprego o tratava.
Também não andava muito rijo de saúde.
No decurso do último ano queixava-se de enjoos frequentes, de náuseas e até de tonturas e enxaquecas.
Tinha receio que pudesse ser uma úlcera, ou fígado.
- Oxalá não seja coisa pior! Sabe-se lá?!
Ao jantar quase não tinha apetite e a cabeça andava-lhe esgazeada. Fez análises para ver se era anemia, mas o sangue estava bom, disse o médico.
Serafim nunca teve muita fé naquele médico, mas era o que a televisão lhe dava.

O doutor Gomes Pereira era funcionário da empresa havia muitos anos. Não como médico, mas como locutor. Tinha sido apresentador do telejornal e de outros programas. Um dia cansou-se de ler para a câmara e decidiu ir estudar medicina. Era muito popular dentro e fora da televisão, e tinha um voz poderosa. Poderosa era também a ligação da família ao regime, dizia-se à boca pequena, por isso se lhe abriram todas as portas.
- Não é que não tenha estudado e feito o curso a sério... mas, é claro, deram-lhe facilidades.
Gomes Pereira era visto pelos seus colegas como um excelente médico, um clínico competente. Mas dificilmente sacudiria o estigma e o preconceito que carregava: a imagem pública de um apresentador de televisão.
As pessoas estabelecem preconceitos e resistem à mudança. Gomes Pereira foi vítima disso.
Para além do preconceito, Gomes Pereira carregava ainda um outro problema. Uma deformidade física. Sofria de espondilite anquilosante que lhe evidenciava uma curvatura cifótica dorsal acentuada e também de uma outra patologia morfogénica, nos membros inferiores, que lhe dava alterações motoras.

Sentado em frente à câmara, sem se mexer, como se usava na altura, dava um bom apresentador, não se notava a gibosidade e muito menos a assimetria das pernas. Mas quem o visse passar no corredor dos serviços clínicos, corcunda e de caminhar espástico, facilmente confundiria o médico com o paciente, não fora a figura conhecida.
Serafim pensou muitas vezes: - Marreco e coxo é luva que não assenta a um médico. Vamos lá ver se ele consegue dar conta do meu problema.

O Dr. Gomes Pereira andava, havia um ano, seriamente apostado em descobrir e curar a doença do Serafim. O que parecia não ser fácil.
Fez-lhe exames a tudo, até à cabeça. Receitou-lhe uns compridos que iriam tornar mais permeáveis as trocas da barreira hemato-encefálica, explicou. E forçou-o a uma dieta à base de leguminosas.
Serafim fez tudo e sentiu-se na mesma. E lá voltava desanimado à consulta.

Na penúltima vez, saiu com umas cápsulas de levedura que lhe iriam facilitar o trato intestinal e ampolas para o fluxo vascular. Alegava o médico que o equilíbrio hidro-electrolítico e o ácido-básico, se encontravam em níveis muito satisfatórios, como revelavam os exames laboratoriais.
Serafim não gostou do que ouviu, claro.
- Para quê tanto exame, quando o que ele me deveria ter receitado era simplesmente uma coisa que parasse de vez com os vómitos e as enxaquecas.
O Dr. Gomes Pereira terminava habitualmente as consultas partilhando as interrogações de Serafim. Concordando que nada configurava um quadro clínico de contornos conclusivos e coincidentes com a sintomatologia.
– Conversa que não leva a lado nenhum! Paleio de engenheiro, sem tirar nem pôr! – Murmurava Serafim à saída.
Estava tão farto deste médico como dos engenheiritos que aturava todos os dias no emissor.

Na última consulta, Serafim arriscava-se a sair do consultório com mais umas receitas de comprimidos para isto, uns exames para aquilo, mas principalmente com uma enorme interrogação:
- Por que raio não me meti logo num médico a sério, um particular? Perdia o amor ao dinheiro mas já estaria tudo resolvido!
E ali mesmo decidiu: – É a última vez que venho à consulta do marreco!
Foi nesse instante terminal, Serafim já de pé, prestes a sair do gabinete, receita na mão, que o médico o interpelou:
- Espere aí, homem. Não se vá embora que eu quero fazer-lhe mais umas perguntas.
Gomes Pereira revia na vertical a ficha clínica de Serafim como se tivesse subitamente encontrado um valor laboratorial que lhe induzisse uma nova pista terapêutica.
- Sente-se! Você disse que nas férias não teve dores de cabeça nem enjoos?
- Não, doutor. Na terra passei sempre bem.
- Nem no inverno, quando o tempo anda molhado? Ou no pino do verão, quando o calor aperta?
- Não doutor, isto é mais uma coisa de meia estação. Os enjoos aparecem-me mais na primavera e no outono.
- Entendo!... - Disse o médico, com um fácies inquiridor e pouco clínico. – E enquanto andou no turno da noite, sentiu-se melhor, não foi?
- Foi, doutor. Nessa altura eu andava bem.
O médico ajeitou-se na cadeira. – Diga-me uma coisa, homem. Você dorme a sesta no trabalho?
Serafim retorceu-se incomodado, mantendo a porta do consultório na alçada do olhar.
– Doutor, eu fui sempre um funcionário cumpridor!
- Homem, desembuche! Está a falar com um médico, não está a falar com o engenheiro!
- Ó senhor doutor, se o trabalho o permite eu passo pelas brasas a seguir ao almoço.
- E onde é que você dorme a sesta, Serafim?
- Na parabólica, doutor.
Gomes Pereira, determinado, impulsionou o rodado da cadeira para trás e após um rabisco conclusivo na ficha do Serafim, lançou-a num voo de rara agilidade que a fez tombar no armário arquivador.
- Está virada a sul, doutor. Protege-me do vento agreste que vem do forte do Alto Duque. E quando me enrosco lá em cima, quem passar por baixo não me vê. Mas o trabalho nunca ficou prejudicado por causa disso, senhor doutor.

João Salvado

Comentários

Este Serafim foi o mesmo que utilizou os "tickets restaurant" dos colegas, ao "serviço" dos quais ia, ou à cantina do Lumiar, numa 1ª fase, ou à da 5 de Outubro, a partir de 1980, buscar em marmitas os respectivos almoços, só que em parceria com o cozinheiro parte dos "tickets" não iam parar às mãos da empresa concessionária das cantinas, mas aos bolsos dos intervenientes.
Quando o corpo pedia o nosso Amigo Serafim satisfazia o desejo na "marreca de Monsanto". É que a dita aceitava "tickets restaurant".
Outros tempos!!!!!!

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