Super Putaria Nacional


A história que se segue é verdadeira.
Passou-se comigo nos anos 70.

Em casa dos meus pais, junto à janela da sala que dava para as traseiras, havia uma mesa de design inigualável, que incorporava a televisão.
O aparelho, um verdadeiro luxo, “com muito bom som e uma imagem muito clarinha” como elogiavam os vizinhos, vivia pousado numas pernas aflitivamente esguias, porque assim o determinava o gosto da época, e convivia com um naperon e uma peça de loiça decorativa na prateleira de baixo, nada mais.
Da sóbria carcaça do móvel televisor sobressaiam meia dúzia de botões – o On/Off, o Som, o Claro/Escuro, e uma botoeira em sequência, para comutação de canais (VHF e UHF), já preparada para um total de seis estações.
Não havia comandos nem controlo remoto. Talvez porque não tivessem ainda sido inventados, nem fariam sentido. O país satisfazia-se com dois canais de televisão – aliás, um e meio, porque o “segundo” só emitia a certas horas.
Mudar de canal era uma coisa enfadonha, que raramente havia necessidade de cumprir.

A televisão ouvia-se bem alto, porque não havia necessidade de comedimento sonoro. Quando se ligava o televisor, toda a família assistia e não havia outros barulhos para gerir.
Os sons emitidos em excesso, quer fossem propagados pela conduta das escadas do prédio, ou pela janela, para os quintais, só poderiam trazer benefícios – ter televisão em casa era motivo de ostentação. Tudo boas razões para se ouvir televisão bem alto.
Foi por estes dias, e neste cenário, que me aconteceu o inesperado.

Aproveitando o intervalo publicitário de um programa, levantei-me do assento de palhinha com almofadas de tricot – o cadeirão que era o meu território naquela sala – e, com a polpa do polegar, comutei de estação, impondo à família a mudança: do canal 1 para o canal 2.
Com o gesto, estalou uma voz assertiva vinda de dentro do televisor, que clamou, alto e bom som, a embaraçosa expressão: - SUPER PUTARIA NACIONAL!
Paralisei.
Paralisámos todos naquela sala, menos a avó Josefina, que já pouca coisa a perturbava. Por demência, acusava algum distanciamento aos desvios dos padrões da moral, sobretudo vindos da televisão.
 - SUPER PUTARIA NACIONAL! – Nunca tal tinha sido dito na televisão portuguesa.

A mãe, envergonhada, olhos afundados no trabalho de renda, como se disfarçasse um feminino sentimento de culpa, ela que nunca tocava nos botões da televisão, emudeceu.
O pai, de olhar inquiridor, vidrado na relação do meu polegar direito com a botoeira, como se me acusasse de ter subitamente inventado um botão subversivo no aparelho, ainda procurava a palavra adequada para me repreender.
Mas eu, de olhar desfocado dirigido ao terylene do reposteiro da janela, interiorizei o momento e reconstitui os factos, num dos mais admiráveis episódios de rewind da memória curta que até hoje protagonizei, e apresentei à família, em segundos, uma explicação perspicaz e substantiva para o dramático acontecimento:
- Quando mudei de canal, estavam ambos a passar publicidade. No canal 1 anunciava-se o “super pop”, enquanto no canal 2 se anunciava a “lotaria nacional”. Acontece que o instante da mudança determinou a estranha combinação de “super p/otaria nacional”. A semelhança das vozes e do tom das duas locuções, haveria de enfatizar a reconstrução dramática. Foi isso apenas, paizinho!
O brilhantismo da explicação colheu. Sossegou a família e o prédio. Em casa, ficou reestabelecida a autoridade patriarcal; e na rua, o assunto não chegou sequer ao conhecimento do pide Antunes, que moravam uns prédios mais acima, já próximo da basílica da Estrela.
No entanto, o affair “Super Putaria Nacional” havia de integrar o lastro da herança familiar e fazer parte do stress traumático que transportei da adolescência.

Desde esse tempo, há tantos anos, tenho presenciado outros momentos dramáticos transmitidos pela televisão, mas nenhum deles conseguiu impressionar-me como a “Super Putaria Nacional”.
Vi, em directo, as torres gémeas caírem em chamas, a 11 de Setembro.
Vi e ouvi o Cunhal dizer ironicamente “olhe que não, doutor. Olhe que não!”
Vi a Palmira Bastos bater com o bastão no estrado e gritar “porque as árvores morrem de pé!”.
Vi, apesar do sono, porque eram seis da manhã, o homem na lua... que, muitos diziam, não podia ser verdade.
Vi um senhor, na SIC, gritar em histeria: “- Ponha! Ponha! Ponha!”, quando lhe apontavam as unhas de um lagarto à careca.
Vi o Zip Zip quase todas as semanas. E vi a entrevista ao Almada Negreiros.
Vi e realizei o olhar fulminante do Soares quando o Basílio Horta o acusou de tráfico de diamantes.
Vi o Ferrão Katzenstein ser simultaneamente entrevistado e realizador, num programa experimental do Zé Nuno Martins.
Vi o invencível Lusitânia Expresso, com o Eanes à proa, voltar para trás, só porque o mandaram.
Vi imagens do massacre de Santa Cruz e, anos depois, vi o cordão humano com que Lisboa recebeu o Ximenes e o Xanana.
Vi o canal da Igreja passar a estação líder, por causa de um pontapé do Marco.
Vi o Carlos Cruz assegurar no Jornal da Noite, em tom solene e voz trémula, que “enquanto houver um português que suspeite...”
Vi a Gabriela Cravo e Canela.
Vi o Cavaco mastigar de boca aberta, num primeiro tempo; e, num segundo, discursar numa varanda do CCB em tom ressabiado porque tinha vencido a eleição.
Vi o John Lennon anunciar “agora batam todos palmas, e aí em cima, os membros da família real, podem chocalhar as joias!”
Vi o Zé Galvão falhar a transmissão de um penálti, quando realizava um jogo de futebol, porque se enganou a carregar num botão.
Vi, vezes sem conta, gente sem escrúpulos jurar “que cumprirei com lealdade as funções que me são confiadas!”
Vi a equipa de emissão da RTP, nos intervalos das lições da telescola, passar invariavelmente o mesmo tema dos Pink Floyd, enquanto na régie se exultava em coro: “we don't need no education... hey, teacher, leave the kids alone!”
Vi a SIC ser o canal mais visto, mesmo durante o serão em que, por avaria do emissor, não tinha emissão no ar.
Vi o Pinheiro de Azevedo gritar “é só fumaça!”
Vi várias vezes a Julie Andrews e a família Trapp, nas tardes de Ano Novo – sempre como se fosse uma estreia.
Vi o Papa e os respectivos atentados... alguns, apenas à memória.
Vi e deliciei-me com os comentários do Cordeiro do Vale nas transmissões do Torneio das Cinco Nações.
Vi algumas vezes o Mário Crespo. Ora quando se pavoneava em estranhas entrevistas; ora quando cruzava as pernas com rigor coreográfico e, encaixando uma mão na outra, dizia invariavelmente: “...a excelência do jornalismo da CBS, na excelência de conteúdos que é a SIC Notícias”
Vi os directos do Albarran na guerra do deserto; e o espectáculo da tecnologia da guerra transmitido pela CNN.
Vi o Carlos Lopes vencer a maratona em Los Angeles e o José Galvão comentar o feito num banho de choro.
Vi policias a encharcar polícias no Terreiro do Paço.
Vi o chinês parado em frente ao tanque, em Tiananmen.
Vi casamentos de príncipes e funerais de artistas, e de soberanos; e vi mineiros resgatados por um canudo.
Vi todas estas coisas... e tantas outras, que não cabem nesta enumeração.

Também sei que actualmente passam coisas igualmente dramáticas e importantes na televisão, mas eu já raramente as vejo.
Porque não tenho paciência!
Ou, se calhar, porque ainda estou traumatizado com a “Super Putaria Nacional”.

João Salvado
Agosto 2012

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