Parto na auto-estrada
Chicago, 13 de Outubro de 2009. Quase três da manhã. Tracy conduzia na Chicago Eisenhower Expressway visivelmente nervoso, enquanto Judy, sua mulher, se torcia de forma quase animalesca no banco ao lado, arfando e bradando palavras sem sentido.
- Queres que pare já aqui? gritou Tracy.
- Não sei! sussurrou Judy visivelmente assolada pelas dores de parto e em total negação com as circunstâncias em que o corpo se rebelava.
Tracy tentou manter a serenidade e decidiu, sozinho, que não havia outra solução. Não conseguiria chegar a tempo com a mulher ao hospital. Seria mais prudente parar na berma, chamar a emergência médica e assumir que o seu quarto filho iria nascer ali mesmo, à beira da estrada.
Que há de fascinante na aventura narrada nesta história? Nada.
Bebés nascidos a caminho do hospital dariam para encher bairros de infantários. Ainda assim não chegariam a ser notícia.
Mas a história poderá ganhar consistência se eu disser que a parturiente Judy, Judy Hsu, é pivô na ABC7 de Chicago – faz o noticiário das 11:00.
Tudo começa a fazer sentido. Judy não é uma mulher qualquer – é pivô na ABC7.
Não seria mulher para parir na beira da estrada a não ser que isso representasse uma experiência radical, digna de uma história narrada em tons épicos na TV.
Vejamos, ao contrário de outras mulheres, parturientes ou não, Judy tem uma vida muito preenchida em que tudo faz sentido.
Começa o dia bem cedo, numa azáfama de cabeleireiros e maquilhadores, com interposição constante de briefings de produção, com telefonemas do editor, com a leitura dos jornais da manhã e um olhar cruzado pela resminha de papéis, mails e uma resenha de sites impressos que a assistente de produção diariamente lhe prepara e entrega em mão, já com sublinhados a highlighter rosa e verde, consoante correspondam à codificação de “negativo” ou “positivo”, páginas salpicadas de post-it nas partes que requerem anotações de produção, tudo agarrado por um clip no canto superior esquerdo. Judy nem sempre se interessa pela leitura da info referente aos convidados que recebe em estúdio, porque acha enfadonho fazê-lo e porque, com uns anos de plateau, cedo aprendeu que pode facilmente conduzir uma entrevista sem dominar o tema ou conhecer o perfil do convidado.
Depois, todos os dias às 11:00 Judy tem o directo, o estúdio - o teleponto, a leitura, a entoação, a entrevista, a credibilidade nas perguntas, o jogo de câmaras, a segurança do domínio dos temas e dossiers. A responsabilidade da prestação perante o olhar devorador de milhares de donas de casa, admiradoras invejosas, que não lhe perdoariam um erro. Não é uma manhã, é um inferno.
O almoço é muitas vezes uma salada vegetariana que a assistente lhe traz ao gabinete. Outras vezes, quando a Direcção justifica um lunch meeting, vão em trabalho até ao resguardado Takashi, em Bucktown, para um sushi onde Judy não dispensa os divinais handmade noodles.
As tardes de Judy são igualmente árduas. Há sempre dois ou três flash meetings, às vezes há mesmo uma reunião pesada que pode durar mais de uma hora. Tem frequentemente sessões fotográficas e entrevistas para a imprensa cor de rosa de Chicago. Nuns dias tem o briefing para a crónica semanal, que os copy escrevem e ela assina, no blog da estação; outro dia tem as sessões de prova de vestuário.
Ginásio só raramente, quando pode.
Às quintas há a reunião de styling, com Jeff Barry Davis, um coreógrafo frustrado que faz de art director no canal e controla a imagem da estação. Frenético, tiquoso e excessivamente interventivo – dos penteados à cor das unhas, dos acessórios de vestuário à iluminação, implica com tudo. Proibiu os cinzentos e os castanhos em antena. Não fosse a relação secreta que (dizem) tem com um dos directores da “major” e já o teriam posto a andar.
Só depois das 15:00, Judy Hsu, consegue desligar o telemóvel de trabalho, activar o pessoal, e regressar a casa pela mesma estrada que haveria de tornar famoso o parto do seu quarto filho, num percurso de 20 minutos, totalmente ocupado pela conversa em alta-voz com Soledad, a mexicana gorda, de tinta preta a vincar as sobrancelhas, que lhe governa a casa e lhe dá conta de todas as novidades – não as do mundo, mas as do lado mais prosaico da vida, como a lasanha que descongela no micro-ondas e os trabalhos de casa dos meninos. Só mesmo à porta de casa Judy desliga o telefone, coisa que sempre confundiu Soledad, desajeitada a cumprimentar e acolher a mulher a quem disse tudo o que havia de relevante nos 20 minutos anteriores.
Mas estes minutos de conversa são o momento estruturante da transfiguração de Judy que, todos os dias pelas 15 horas, passa de pivô a mãe/esposa/mulher.
A reportagem do parto na auto-estrada foi matéria de desenvolvimento nos telejornais da ABC7 de Chicago, ontem e hoje. Mais, todo o estado de Illinois, 13 milhões de habitantes, ou no mínimo aqueles que sintonizam a ABC e suas “afiliadas” tiveram a oportunidade de ver a história do parto não assistido de Judy Hsu – nada que nos possa surpreender, a nós portugueses que neste cantinho do mundo já nos habituámos às falsas notícias que os “telejornais” nos entregam com frequência.
Mas do mal o menos. Convenhamos que um bebé a nascer na auto-estrada é bem mais ternurento e menos obsceno, do que as reportagens do Jornal Nacional sobre o lançamento da nova novela ou, na SIC, a notícia sobre os preparativos dos globos de ouro, ou se quisermos apontar com mais acutilância a ousadia e obscenidade do “jornalismo” nacional, refiram-se os 5 minutos diários do Jornal da Noite dedicados à digestão do programa de entretenimento “Gato Esmiuça...” do dia anterior.
Para quem se quiser deixar comover pelo gesto heróico do pai Tracy que cortou o cordão umbilical do recém-nascido com o atacador do sapato, ali no banco da frente do mono-volume, os berros de Judy misturados com as buzinas de protesto de quem não aprova paragens na auto-estrada, e ele, qual McGiver, antes mesmo de chegar a ambulância com o enfermeiro Kevin Farrow, um bisonte fardado de paramédico, que haveria de conseguir o seu minuto de fama ao ser entrevistado para a ABC, onde teve a oportunidade de transmitir a todo o Illinois, elogioso, verdades grandiloquentes como: “Tracy did a good job!” e “Judy was in great spirit!”, que encaixam soberbamente na construção narrativa da fatalidade do estoicismo popular, tão grata à dramaturgia americana, nas grandes e nas pequenas histórias.
Para quem ainda se comove com coisas destas, a reportagem fica aqui.
As circunstâncias épicas do parto determinaram que ali mesmo, porta do mono-volume aberta, quatro piscas ligados, tapetes de borracha empastados de sangue, placenta e urina, os progenitores, olhando enbevecidos o seu fruto genético, tenham decidido:
- Vamos simbolicamente chamar-lhe Ike!
Ike completará 18 anos no final de 2027. Filho de um caucasiano e de uma asiático-americana, será à entrada do segundo quartel do Sec. XXI, mais um cidadão mestiço do Illinois num continente já totalmente miscigenado.
Nessa altura terá idade para decidir se muda de nome ou se mantém a fórmula “Ike” que o obrigará, nalgumas circunstâncias, a explicar como nasceu... e sobretudo onde nasceu.
Em 2027, a explicação dos acontecimentos da noite de 13 de Outubro de 2009, irá requerer algum enquadramento histórico. A saber: Ike terá que explicar que no início do século as pessoas viam televisão - que através daquela lâmina rectangular a que ironicamente chamavam plasma, lhes chegava um pacote hedonista de impulsos audiovisuais, uma mistura indecifrável de informação e entretenimento, tudo embrulhado em emoções, cor e ritmo, que apaziguava os consumidores, governava os produtores e por isso parecia satisfazer toda a gente.
Que a sua mãe era protagonista nesse circo, dava a cara pelo produto, o que lhe conferia privilégios. E que isso explicava e justificava que um anónimo tivesse recheado a primeiras páginas do seu baby book fotográfico com tão relevante documentação audiovisual.
João Salvado
Lisboa, 14 Outubro 2009
Nota: Li hoje que Tracy e Judy mudaram de opinião e resolveram dar ao bebé o nome Alexander James.
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