Encontram-se e fazem as Pazes - I

Basta estar atento, ver cinema e boas séries, e reparar – actualmente, muitas produções de televisão e cinema equivalem-se em apuramento formal e qualidade técnica. Já lá vão os tempos em que o trabalho técnico, operacional e criativo da televisão era visto por alguma gente do cinema como um resultado pouco cuidado, talvez um trabalho menor.
“Televisão é fluxo” – terão ditado alguns – “logo, um trabalho sem rigor no detalhe”. Mas os tempos vieram diminuir-lhes razões. Muitos factores contribuíram para a mudança. A sociedade mudou e ambas as indústrias acertaram a agulha, corrigindo o paradigma. Nesta coluna iremos analisar alguns aspectos que têm conduzido à aproximação e reconciliação do cinema e da televisão. Comecemos por um de natureza técnica.
Montagem: a lógica não linear.
Sabe como alguns dos grandes nomes do guionismo escrevem as suas obras? Primeiro inventam-lhe um final forte; a seguir, um início inesperado e arrebatador; e só depois constroem o miolo interior, o corpo, aquilo a que chamaremos “a história”. Não garanto que o método tenha aplicação universal, mas certamente que muitos o utilizam porque na abstracção do nosso cérebro, a imaginação e a construção narrativa não carecem de linearidade lógica ou temporal.
Escritores, compositores, pintores, podem começar uma obra a partir de um ponto de génese, um momento de conflito interno que serve de charneira, e daí, ora para trás ora para a frente, criar. E o mesmo acontece na obra cinematográfica.
A história do cinema está cheia de episódios em que, subitamente, o realizador irrompe na sala de montagem, tocado pela musa inspiradora, retraçando o trabalho de dias ou semanas. Cortando aqui, inserindo ali, repondo acolá, planos, às vezes sequências, que relançam com outro balanço, outro ritmo, a lógica narrativa da obra cinematográfica. É assim o génio criativo.
E na televisão? O que aconteceria se aplicássemos idêntica pulsão criativa na edição de vídeo de uma série televisiva? Haverá no vídeo equivalente libertador do método de montagem que anda para trás e para a frente ao gosto criativo do montador?
Na televisão do vídeo analógico – de onde acabámos de sair há pouco mais de uma década – o conceito de montagem era linear por imposição do suporte físico magnético e da fita que não admitia leitura na zona de corte. A montagem, sempre plano após plano, por justaposição de planos e sequências. Quer dizer que numa sequência, o plano 3 só poderia ser montado depois de “fechado” o plano 2, e necessariamente não poderia voltar a mexer-se-lhe (em duração) quando se montasse o plano 4. Um, dois, três, quatro! Por mais natural que o procedimento possa parecer, não o é. Experimente aplicá-lo em tudo na vida e verá as dificuldades. O realizador de televisão que, acometido de súbita inspiração, ousasse refazer sessões de montagem para repor um detalhe numa das sequências já terminadas, obrigava-se a recopiar parte da edição com a inerente perda de qualidade, ou arriscava-se a deitar fora boa parte do trabalho realizado, o que aterrorizaria qualquer produtor responsável.
Esta imposição de uma lógica linear no lapso abstracto da construção da obra, esta impossibilidade de experimentar – pondo e tirando como num rascunho ou numa construção lego – assustou muitos criativos, veio inibir a realização, reduzindo-lhe ousadia e vertigem criadora, empurrando muitos realizadores para o filme em detrimento do vídeo, evocando desinteresse criativo. A televisão, por inerência da lógica de montagem de vídeo, era agora um reduto fragilizado.
Com o advento das tecnologias digitais a televisão descartou-se (em parte) da fita e da k7 (leia-se cassete). Passa para memória e disco os conteúdos que viviam fisicamente bobinados, escreve software cuja arquitectura se assemelha à lógica do manuseamento do celulóide na moviola, e a edição liberta-se.
Com o apuramento da qualidade digital – capacidade, memória RAM, velocidade de processamento, alta-resolução, HD, efeitos digitais, etc., o realizador/montador de televisão, liberta-se do estigma cartesiano em que sempre tinha vivido e ganha um novo fôlego, no sentido criativo do termo.
Na sala de edição, na suite ali ao lado, o realizador de televisão encontra agora um vizinho amigo – um velho utilizador do não linear, mas novo, porque recém rendido às virtudes do digital – o realizador de cinema.
Para alguns a vingança está servida. Para outros bastaria que se tivesse dito: - cinema e televisão, seguimos caminho juntos!
João Salvado, realizador
Publicado na revista PREMIERE de Janeiro 2009

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