Venham os gentornalistas que Abril não está fácil
Última semana de Abril, primeiros dias de Maio, jornada habitualmente marcada por outro tipo de agenda – a evocação das datas que celebram o ADN da nossa democracia.
Abril não esperava que estes dias viessem a ser marcados por um conjunto de acontecimentos relevantes na área da comunicação social, mas foi isso que aconteceu... para o bem ou para o mal. Vejamos:
A TDT
29 de Abril de 2009. Início formal, mas desastroso, da televisão digital terrestre em Portugal.
Um serviço tecnológico novo que começa vazio, sem conteúdos.
As três televisões, a PT, o governo, a ANACOM, a ERC, vão enganar o país. Vão mentir-nos dizendo que tudo está a funcionar como previsto. O país, sem informação crítica e perante um tema demasiado técnico, vai acreditar.
A TDT começa mal. Vejamos algumas verdades que nos serão omitidas:
1 - O calendário português de implementação da televisão digital põe o país na cauda da Europa. Fazemos mal e tarde. Estamos no grupo da retaguarda, com a Letónia, Chipre e a Roménia, por exemplo.
2 – Pior, Portugal será uma excepção no espaço europeu. Talvez o único país que não associa um novo produto, um novo canal, à inovação tecnológica. Dia 29 estaremos a inaugurar uma “onda hertziana”.
3 - Portugal confinou a televisão generalista free to air a um único multiplexer. O que traduzido para linguagem que se entenda quer dizer: limitou a televisão gratuita a cinco canais. As restantes dezenas de canais (muitas), que a tecnologia digital irá permitir, ficam reservados para a televisão paga. Uma decisão muito pouco social, do governo, a que não serão alheios os interesses da PT a quem foi adjudicada, num concurso público polémico, a exploração de toda a rede digital (6 multiplexers).
4 - Oposto ao caso português refira-se, por exemplo, a República Checa, com um calendário muito à frente do nosso, onde o governo decidiu autorizar 24 novos canais que lançou a concurso público. Aparecem “apenas” 6 candidatos e foram atribuídas 6 licenças. (O coração do Dr. Balsemão não teria resistido, se vivesse na República Checa).
5 – O esvaziamento do concurso público para o quinto canal, por interesses claramente políticos e de pressão de grupos económicos, é uma vergonha nacional que humilha a independência das entidades reguladoras.
6 - Sem direito a desmentido por parte das entidades técnicas, em particular da ANACOM, tem-se generalizado a ideia de que o futuro (temporariamente comprometido) quinto canal será o último possível no espectro radioeléctrico. Totalmente falso.
O Dividendo Digital
É importante sublinhar que Portugal não terá mais canais generalistas free to air (FTA) porque apenas lhes foi reservado um dos multiplexers. Os 5 restantes foram atribuídos à pay-tv. Isto é, cerca de 80% das frequências ficam destinadas à comercialização. A política do interesse comercial prevaleceu sobre a política do interesse público.
A transição do analógico para o digital irá libertar frequências – um canal de televisão que transmita em digital irá ocupar cerca de 25% do “espaço” hertziano que necessitava para emitir em analógico – ganha-se em qualidade e poupa-se espectro. As frequências que sobram podem ser utilizadas para outros fins. A esse “ganho espectral” foi atribuído o nome de “dividendo digital” e em todo o mundo, país a país, a sua utilização está a ser pensada. A União Europeia estimulou fortemente os Estados membros a discutir e a gerir com critério esse bem radioeléctrico.
Em Portugal, durante todo o mês de Abril e até 13 de Maio está a decorrer, sob os auspícios da ANACOM, a Consulta Pública sobre o Dividendo Digital, que pretende recolher ideias e sugestões da sociedade, sobre o assunto. O assunto esteve em discussão, recentemente, no aconchego das salas do CCB, para conversa de engenheiros e poucos mais, enquanto a opinião pública, sem participação na consulta, continua amarrada à ideia de que não poderá haver mais do que cinco canais generalistas. Estranho! É o mínimo que se pode dizer.
NAB 2009
24 de Abril. Em Las Vegas termina a NAB 2009, o maior certame mundial de tecnologia de televisão. Apareceram novidades, uma delas apresentada por David Rehr: a utilização das frequências dos canais de televisão já existentes para transportar emissões de rádio para dispositivos móveis, rentabilizando serviços e custos (lá voltarei, num próximo post).
Quinto canal, o juiz decide
23 de Abril. A Telecinco, o quinto canal de televisão, passou para uma nova fase – a judicial. A menos que a justiça seja “uma batata”, será apenas uma questão de meses (anos, no sistema judicial português) até que a verdade seja reposta. Para quem conhece bem o dossier não há razões para que qualquer juiz não determine repor a Telecinco no concurso público. Até lá, vou imaginando Azeredo Lopes no banco do tribunal a explicar porque leu NÃO numa resolução do Conselho de Ministros que diz SIM.
Espera-se uma decisão justa, mas não apenas isso. Espera-se que seja exigida responsabilidade extracontratual aos eventuais condenados, com efeito moralizador na sociedade. De futuro, outros comissários políticos deverão pensar duas vezes antes de tomarem decisões abstrusas e levianas, apenas porque o fazem a coberto dos interesses do patrão.
Com o canal parado numa repartição judicial faz sentido que os responsáveis pelo projecto Telecinco pensem numa solução transitória. É preciso aguentar a travessia, mas sentados à espera não se chega a lado nenhum.
O projecto Telecinco consubstancia uma televisão multi-plataforma, não apenas 1 televisão + 1 site, como acontece com as existentes.
A ERC coarctou a capacidade broadcasting da Telecinco mas, para o bem de todos, a ERC não tutela nem detém autoridade sobre as outras plataformas de emissão, a Internet, por exemplo. (Teríamos Internet como tem o Irão, se a ERC a pudesse regular). Faz sentido que a Telecinco utilize as tecnologias não tangíveis pela ERC para se poder afirmar como órgão de comunicação emergente. Criando nome e marca. Operando num patamar intermédio. Criando públicos. Treinando rotinas. Potenciando serviços que irá prestar mais tarde.
O mundo dos new media é um universo fascinante que se abre à nossa frente todos os dias, como numa caixa de surpresas. É para ele que devemos olhar, estudando, aprendendo. Quem não lhe atribuir importância, estará condenado.
É nesse sentido que se enquadram as duas histórias, os dois case studies, que refiro a seguir.
Michael Wolff e a morte dos jornais
2009, última semana de Abril. Michael Wolff prevê que 80% dos jornais em papel irão desaparecer dentro de um ano e meio.
Quem é Michael Wolff? É o fundador do Newser – o Newser é um serviço de notícias online que junta inteligência humana e trabalho automatizado de agregação de conteúdos, disponibilizando aos utilizadores toda a informação para consulta "em menos tempo e de forma mais visual e atractiva".
Wollf explica o funcionamento do site: “procuramos as melhores histórias por toda a web, lê-mo-las e reescrevê-mo-las de forma mais sucinta e agradável, numa grelha visual rica em imagem, vídeo, áudio e links para o texto de origem.”
O Newser é um site (um serviço) que recolhe admiração crescente no mercado americano.
Se Michael Wollf vir realizadas as suas profecias restam-nos os livros e as revistas até que alguém anuncie também a morte, o fim, do ciclo Gutemberg.
Lepost.fr oito milhões de visitantes mensais.
Lepost é outro site inovador. Menos espectacular na componente visual, mas mais sólido que o Newser e assente em conceitos extremamente ousados. Nasceu há ano e meio a partir do Le Monde Interactif, o website do jornal Le Monde.
Lepost é um caso de sucesso e tornou-se um case study na comunidade francesa e internacional. Não pára de crescer, no mês passado (Março de 2009) contou com quase oito milhões de utilizadores regulares. O negócio conta atingir o breakeven em 2010.
É um site de informação, de jornalismo, com uma linha editorial um pouco mais tablóide que o jornal mãe”, o Le Monde. Mas quais as singularidades do Lepost que o expõem à atenção internacional?
Benoît Raphaël (na foto), o chefe de redacção do Lepost explica: “o que faz a diferença do Lepost, para outros sites de informação é que as notícias são feitas pelos jornalistas da redacção e pelo público”. Aquilo a que chamam conteúdos pro (profissionais) e conteúdos am (amadores).
A redacção do Lepost é composta por nove jornalistas:
- 1 jornalista sénior, o chefe de redacção;
- 4 jornalistas especializados em áreas temáticas (política, media, Internet, crime e acidentes);
- 2 na desk agregando notícias, reescrevendo-as;
- 1 “vídeo-jornalista” que investiga em permanente zapping na net, conteúdos visuais que possam ser agregados;
- 1 “coach-jornalista” encarregado da relação com a comunidade. Parte do seu trabalho é validar a informação enviada pelos gentornalistas (1), procurar testemunhos, etc.
O site criou uma comunidade de 25.000 membros. Cerca de 1.000 são participantes activos, escrevendo, por exemplo, comentários. Cerca de 250 são convidados – produzem conteúdos, são bloggers e colunistas... e recebem dinheiro. São pagos à percentagem em função dos pageviews. Os gentornalistas recebem 50% da receitas da publicidade associada ao conteúdo, com um mínimo garantido de (500 USD) 380 euros mensais.
Os gentornalistas enviam para o Lepost cerca de 500 contribuições diárias. “Valorizam as notícias mais do que os jornalistas convencionais, porque conhecem bem o assunto, sabem do que escrevem, trazem emoção, autenticidade e conhecimento. São especialistas, testemunharam o acontecimento. São apaixonados por um assunto, sabem tudo sobre ele”, explica Benoît Raphaël.
Além dos nove membros da equipa editorial, o site conta com:
- 1 director de marketing
- 1 product manager
- 1 comercial para venda de publicidade
- 2 developers
E o site “mãe” o lemonde.fr colabora, partilhando alguns técnicos e informáticos.
A relação entre conteúdos profissionais e amadores é de 1/10. O Lepost publica diariamente cerca de 40 novos artigos pro e 400 am. Mas a contabilidade não tão linear como isso, a estratégia editorial é a de co-produzir conteúdos. Perderia interesse e eficácia dividir o site em dois lados distintos, o profissional e o amador.
As notícias am que chegam ao Lepost são processadas: a informação é validada, “filtrada” por moderadores para assegurar que não há matéria ilegal, falsa informação e que não é contraditória com o estatuto editorial do site.
Na redacção, o primeiro contacto com as notícias am é feito pelo coach-jornalista e depois pelos jornalistas especializados. Cada jornalista do Lepost gere uma pequena comunidade de contactos em quem confia. Qualquer conteúdo informativo recém-chegado à redacção é rapidamente “checado” mediante uma técnica, um conjunto de procedimentos, que a redacção criou, a que chamam FFC (fast fact checking).
“Foi graças à tecnica de FFC e à ajuda de um amador, que descobrimos, há uns tempos, que um vídeo dramático sobre a faixa de Gaza era falso. Descobrimos a fraude e evitámos a sua publicação. Na mesma altura, a France 2, o canal público de televisão, precipitadamente, emitiu-o, porque não tinha validado a origem” explica Benoît.
“O ciber-jornalismo traz-nos um mundo novo, não apenas o velho jornalismo assente numa nova plataforma. Um ciber-jornalista do Lepost é um produtor de informação, um agregador, um activista na comunidade. Pela forma como elabora a informação é uma jornalista em rede. O ciber-jornalista pesquisa o que sobre o mesmo assunto foi publicado noutros media, noutras plataformas. Congrega material de diferentes origens, como blogs, twitter, You Tube, etc., e meios tradicionais” diz Benoît Raphaël
Nota curiosa: o Lepost cancelou os serviços de agência, a France Presse e a Reuters, alegando que “nada acrescentavam à produção informativa”. Benoît explica: “será sempre necessário ter acesso à informação “breaking news”, mas ela está espalhada por toda a parte, ao mesmo tempo. Era frequente sermos informados de uma notícia antes da Reuters e da AFP a conhecerem, bastava-nos consultar a nossa conta de twitter”.
“E mais – sublinha com pragmatismo Benoît Raphaël – num mundo de comunicação em rede não faz sentido enviar jornalistas para toda a parte para cobrir a notícia, porque a notícia está acessível em toda a parte, gratuita, partilhada instantaneamente por centenas de jornalistas que produzem os mesmos parágrafos, as mesmas imagens”
A redacção do Lepost faz lembrar uma redacção de radio. A informação não cristaliza depois de publicada, está sempre a ser processada e re-processada, mesmo estando já “no ar”.
É de Benoît Raphaël a frase “O ADN da Informação mudou. Agora é preciso mudar o ADN dos jornalistas”.
Fica o aviso.
(1) - Gentornalista é uma palavra que decidi inventar para este texto. É uma contribuição liberal para a tradução do termo inglês “citizen-journalist”.
Espero que funcione. Se não funcionar, esqueçam-na e substituam por outra melhor.
Comentários