O Disco Versátil


Onde andará o VHS de três cabeças que lhe custou os olhos da cara já lá vão uns quinze anos? Provavelmente no lixo ou em algum sótão poeirento que aguarda coragem para uma arrumação de fundo. Leia o texto que se segue e verá que ainda vai subir ao sótão para revisitar o velho aparelho e o confortar com umas palmadinhas de saudosa amizade.
Se descontinuou o seu leitor/gravador de VHS foi porque descobriu, como o resto do mundo, as virtudes do DVD. Nada se pode comparar à qualidade do digital. As dobras na fita, o tracking, os drops, tudo desapareceu, que alívio. Que diferença na qualidade da imagem. Os menus, a opção de legendas em várias línguas, ou de as não ter, simplesmente. Os extras. Os ângulos de câmara. As diferentes versões de áudio. Até os comentários dos actores e do realizador sobrepostos ao filme. Não há comparação.
É claro que você copiou para DVD duas ou três cassetes absolutamente inapagáveis. E a partir daí esqueceu o velho formato analógico. Ganhou em qualidade e em espaço na estante.
Mas terá ganho em tudo? Terá ganho na usabilidade, na facilidade de manuseamento e de axcesso aos conteúdos? Pondo a questão de outra forma: será o formato DVD totalmente inovador em comparação com os velhos formatos analógicos? Talvez não haja unanimidade na resposta, vamos ver.
Já todos experimentámos introduzir um disco no leitor de DVD apenas com o objectivo de aceder a uma determinada cena, ou imagem, que está mais à frente no filme. Pois bem, a codificação dos menus obriga-nos a visionar, sem possibilidades de saltar ou passar à frente, os menus de interesse directo dos produtores, como animações e logotipos de produção, informações autorais e anti-cópia, e até trailers de outros filmes, em alguns casos. Só quando chegamos ao conteúdo do filme, ao corpo da obra, por vezes minutos depois do arranque do DVD, podemos aceder às funcionalidades que o “velho analógico” sempre nos permitiu em toda a extensão da fita, o clássico fast forward. Não constituirá isso uma limitação imposta ao consumidor?
É claro que o velho VHS também era limitado nas funcionalidades de bobinagem, procurar uma imagem no final do filme poderia levar alguns minutos se a cassete não estivesse devidamente "apontada". Mas isso era uma limitação física. Nada poderia evitar o tempo de bobinagem mecânica. Pelo contrário, no DVD o acesso do feixe laser a qualquer zona do disco é quase instantâneo. Desapareceram as limitações físicas, mas introduziram-se outras, lógicas, de software, de interesse industrial e autoral, não necessariamente vantajosas para o consumidor e proprietário do suporte.
Repare-se nas animações (algumas de gosto duvidoso) das diferentes produtoras, distribuidoras, importadoras. Quantas vezes já experimentou acelerar o DVD nesta zona e não conseguiu? Quantas vezes, quanto tempo já perdeu a ver aquele agressivo clip anti-pirataria que o avisa "você não faria isto, não roubaria aquilo..."? Quantos DVD's lhe impuseram o repositório de quadros de aviso de direitos de autor para a Grécia, Austrála, Hu8ngria ou República Checa? Isto é-lhe imposto a si que está a ver um DVD original sobre o qual pagou e respeitou os direitos autorais.
Permita-me uma analogia: imagine que antes de deitar os corn flakes na tigela do leite, você seria obrigado a ler todas as informações de fabrico do produto e logotipos da embalagem - e isto, claro, todas as manhãs. Será a comparação excessiva?
Estudiosos de mass media, sobretudo em algumas universidades americanas, têm-se debruçado sobre o assunto e as suas investigações têm permitido conclusões curiosas. Donald A. Norman, por exemplo, um professor da universidade de San Diego, na Califórnia, um teórico e investigador em Psicologia Cognitiva e HCI (human-computer interaction), é crítico e não-alinhado quato à entrega incondicional às virtudes do formato DVD. Aconselha-se a consulta da sua obra.
Em suma, pode-se defender que o DVD transporta, em alguns aspectos, se não a "ditadura" (talvez o termo fosse excessivo), pelo menos a imposição dos interesses da indústria sobre o consumidor.
Quando o mundo, a tecnologia e as funcionalidades avançam no sentido da amigabilidade, da usabilidade, não será contraditório introduzir limitações num media que mereceu como apelido de baptismo o nome "versátil"? Lembremo-nos que DVD significa Digital Versatile Disc.
João Salvado, realizador
Publicado na revista PREMIERE de Dezembro 2008

Comentários

Stargazer disse…
Video killed the Radio Star :)

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