Contar histórias - Bora lá - I
Há dias cruzei-me no ciber-espaço com um amigo, um ex-colega, que não reconheci.
No momento não lhe vi a cara e não tivesse ele acenado uma salvação este texto nunca existiria.
Não que o ciber-espaço seja uma viela sombria mas apenas porque o amigo me apareceu sob a forma de texto, sem assinatura visível, e eu, desabituado a passar por aquelas esquinas literárias, não percebi quem era.
O ciber-espaço tem destas coisas.
Feitos os cumprimentos lá celebrámos o ciber-encontro, resumido neste diálogo imaginário.
- Bons tempos... e tantas histórias para contar. Fulano e sicrano, que saudades!
- É verdade, quantas histórias!
- Então “bora lá” contar essas histórias – Desafiou-me o Paulo
O Paulo, assim se chama o amigo e colega, anda por aí. Dá aulas, não sei bem o que faz desde que saiu da SIC.
Nunca fomos muito chegados no trabalho, mas sempre apreciei a forma exuberante como ele expressava um humor caustico e pulsante.
Nunca lho terei dito ou demonstrado, mas gostava dele.
A melhor memória que dele retenho havia de ficar guardada para o final. Nunca a vou esquecer. E isso constitui, porque não, uma história do “bora lá contar!”, desta vez com o estímulo de que ele também a estará a ler.
Bora lá!
Estávamos em 2001, acho. A SIC tinha entrado na fase de despedimentos, descartando-se às mãos cheias dos seniores, dos mais caros, dos mais experientes, dos mais incómodos... ou, se quiserem, na fase de se desfazer das excrescências, das adiposidades, emagrecendo a equipa, ajustando-a às novas circunstâncias empresariais.
Whatever?... Que interessa?
Viviam-se dias difíceis naquela comunidade de três centenas de pessoas. Todas as semanas novos nomes se juntavam à lista dos que tinham sido convidados a considerar as vantagens de assinar uma rescisão amigável que sempre evitaria a humilhação do despedimento. Outros chegavam-se à frente e batiam com a porta - por descrédito no projecto, por melhor oferta cá fora ou simplesmente por medo e atracção do abismo – avançavam.
Em silêncio e à boca fechada ia-se sabendo quem eram as novas vítimas.
Uma família profissional que antes tinha tocado a lua, agitava-se agora desnorteada.
Quando alguém recebia a marca de saída era como se tivesse sido colocado numa rampa de lançamento.
Por medo ou coragem, ganhava peito, voz, energia buliçante. Virava atracção de todos os colegas. Era paliativamente acarinhado por olhares, conversas e silêncios carregados de diferentes significados – de admiração, de piedade, de respeito e solidariedade, até de desprezo e inveja, porque tinhamos alcançado a liberdade.
Quem não saberá do que estou a falar? Quantas empresas, quantas micro-sociedades terão vivido o mesmo estado de alma?
Mas bastaram duas ou três fornadas para se perceber que havia uma dramaturgia no despedimento.
No countdown de cada partida havia um momento de catarse colectiva - o Ignition! da rampa de lançamento: o mail de despedida de quem saía. Todos o ansiávamos.
A natureza humana tem destas fraquezas – shadenfreude, como lhe chamam os alemães.
Observar como o companheiro resiste à dor infligida, para percebermos como vai ser, quando chegar a nossa vez.
Cada mensagem de despedida deixada nos computadores era o primeiro som de um corpo que se soltava e vertia no texto o estado de alma em que saía – triste, alegre, enraivecido, aliviado, assustado – um ajuste de contas mas também um exercício de serena liberdade.
Havia de tudo nos mails. Eram longos, curtos, literários, mal escritos, nervosos, serenos, agressivos, ressabiados, felizes.
Ao Paulo atribuo o melhor mail de despedida da história (conhecida) da SIC. De tal forma que o decorei quase por completo.
Foi o mais criativo, o mais pragmático, o mais ousado - diferente.
Presumindo que uma empresa de televisão possa ser, nalgumas circunstâncias, um lugar que privilegia a criatividade, se eu fosse patrão daquela casa teria obrigado o Paulo a voltar para dentro, pela porta principal, já não a recibos verdes mas com contrato renovado.
A mensagem de despedida do Paulo dizia simplesmente “O meu NIB é 0007 4325 ____ ____ __ "
Só esqueci os números. O mail e o Paulo nunca mais irei esquecer.
Bora, Paulo! Estamos por aí... um abraço.
Obrigado e um pedido de anuência pela utilização da imagem dos amigos fotografados.
Comentários
Fico à espera de mais histórias. Borá lá!